O mundo está cada vez mais competitivo. E na ânsia por ajudar a criança a ter um futuro promissor, pais, mães e toda a sociedade estão exagerando nas cobranças, a ponto de afetar o desenvolvimento emocional desta nova geração. Em livro recém-lançado nos Estados Unidos, a jornalista Jennifer B. Wallace debate o que está por trás disso e aponta um caminho do meio
No final de 2022, recebi uma ligação da escola. Meu filho, na época com 12 anos, havia sofrido uma crise de ansiedade no meio de uma prova de matemática. Como suas notas nessa disciplina estavam abaixo do esperado, com a melhor das intenções, eu vinha, de fato, pegando no pé dele. Mesmo assim, fiquei sem entender. Por que aquele menino tranquilo, estudioso e comportado estava reagindo assim? E por que isso estava acontecendo justo comigo, uma mãe tão dedicada?
Mas como eu desconfiava, quando o assunto é maternidade, pecar pelo excesso nem sempre é o melhor. O que não é exatamente uma novidade para a ciência. Nos anos 1940, o famoso pediatra Donald Winnicott (1896-1971), pioneiro nos estudos sobre a relação mãe-bebê, cunhou o termo “mãe suficientemente boa”. A teoria, ainda popular entre pais, educadores e pediatras no mundo inteiro, sugere que a mãe pode e deve atender às necessidades do bebê. Sem buscar ser perfeita, porém, já que isso só causaria frustração – tanto para ela quanto, indiretamente, para o filho. De lá para cá, muita coisa mudou, e está mudando cada vez mais rápido. O ideal de perfeição não só cresceu, como também se estendeu às crianças.
Para garantir um futuro próspero, elas são pressionadas a alcançar altas performances – na escola, nos esportes e na vida – desde cedo. Apesar de não ser o único motivo, especialistas acreditam que tamanha pressão está relacionada ao aumento de ansiedade, depressão e até mesmo suicídio entre os jovens. “O receio de não conseguir atender às expectativas dos pais, da escola e da sociedade faz com que a criança processe mentalmente a informação de que não é capaz. A emoção do medo acentuada pode gerar vários transtornos emocionais”, lembra a pedagoga e doutora em educação Elisa Possebon, professora do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
O psicanalista e colunista da CRESCER Thiago Queiroz concorda. “Embora a nossa geração também tenha sido exigida, hoje em dia, essas idealizações são potencializadas pelas redes sociais. Além de ir bem na escola, a criança também acha que tem de performar, empreender e ganhar dinheiro igual aos youtubers e coaches mirins que vemos por aí, tudo isso antes dos 10 anos”, reflete Queiroz, que também é autor de diversos livros sobre parentalidade. “E onde você estava com essa idade? Correndo, brincando na areia, fazendo amigos, ou seja, o que de fato se deve esperar dela”, completa.
Por que insistimos que as crianças sejam excelentes em tudo o que fazem, mesmo sob o risco de prejudicar seu desenvolvimento? Para responder a essa pergunta, a jornalista norte-americana Jennifer B. Wallace entrevistou 6 mil pais, além de diversos especialistas. O resultado foi publicado em Never enough: when achievement culture becomes toxic – and what we can do about it (“Nunca é o suficiente: quando a cultura de realização se torna tóxica – e o que podemos fazer a respeito”, em livre tradução), obra que recentemente ganhou destaque na lista de mais vendidos do jornal New York Times.
O problema vai bem além da conhecida projeção que os pais colocam sobre os filhos, de acordo com Jennifer. “Há muitos fatores, mas os que mais me chamaram a atenção foram as grandes transformações econômicas que estamos vivendo e como essas forças afetam nossa criação de filhos e nossos filhos. Como diz Tom Curran, da London School of Economics, os pais estão se tornando ‘condutores sociais’, preparando seus filhos para um mundo hipercompetitivo, com grande desigualdade e menos redes de segurança social”, explica a autora, em entrevista exclusiva à CRESCER. “Esse estilo exacerbado de criar os filhos hoje não é apenas uma escolha pessoal; é uma resposta à desigualdade extrema, à classe média em declínio, à globalização e à competição feroz”, completa. Jennifer afirma – e nós assinamos embaixo – que não é uma questão de culpar os pais, e sim de ajudá-los a perceber que não estão sozinhos.
Uma nova vida, em um novo mundo
A psicóloga Juliana Corazza, 46 anos, já ouviu diversas histórias de conflitos entre a expectativa dos pais e a realidade dos filhos em seu consultório. E, apesar da sua experiência profissional, confessa que foi difícil fugir desse estigma em casa. “Do meu filho mais velho, que é mais tranquilo em relação aos estudos, cobrava mais. Da mais nova, que costuma ficar apreensiva com as provas, cobrava menos. Aos poucos, com muita escuta da minha parte, eles foram me ensinando a respeitar o ritmo de cada um”, conta a mãe de Giovanni, 18, e Pietra, 14.
Não existe nada de errado em querer que o seu filho ou a sua filha seja bem-sucedido, obviamente. Tudo o que imaginamos sobre e para o bebê, desde antes do nascimento, está relacionado ao quanto estamos dispostos a investir emocionalmente nesse novo ser. “Essa criança é construída a partir tanto da história quanto dos desejos dos pais, o que, muitas vezes, inclui o que eles não puderam ser e ter. A começar pela escolha do nome”, diz a psicanalista Denise Feliciano, presidente do Núcleo de Estudos de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Existe um porém, segundo a especialista.
A família tem de compreender que nem sempre (ou quase nunca) o filho vai corresponder às expectativas. “Mas isso acontece em outras áreas da vida, não é mesmo? Com os amigos, o casamento, o trabalho… A dica é que pais e mães se mantenham abertos às possibilidades. E essa abertura tem de continuar ao longo do desenvolvimento da criança, claro”, resume Denise. Além disso, não custa lembrar: os filhos não são a extensão dos pais. “A sua trajetória diz respeito somente a você. Já o seu filho é uma nova vida, em um novo mundo. Por isso, é ele quem vai criar a própria história”, acrescenta a psicóloga Cristina Borsari, coordenadora de psicologia do Sabará Hospital Infantil (SP).
Na teoria, é mais fácil. Na prática… Muitas vezes é difícil aceitar que os filhos têm características diferentes das que consideramos ideais. Pode ser que ele seja um bebê menos extrovertido do que você gostaria. Ou um aluno mediano na escola. Ou ainda, lá na frente, escolha uma profissão pouco promissora a seu ver. Seja como for, para evitar que o choque entre expectativa versus realidade prejudique o relacionamento entre vocês, os especialistas recomendam que os adultos busquem ajuda profissional tanto para compreender a origem de seus sentimentos quanto para aprender a lidar com eles.
“O que você vai ser quando crescer?”
Por mais que as cobranças sejam cercadas de boas intenções, em excesso, elas podem comprometer o desenvolvimento emocional do seu filho, como já vimos. “Como é um ser em construção, a criança busca a validação dos pais o tempo todo, seja para compreender, seja para testar os próprios limites. A imposição de padrões inatingíveis, além de afetar a autoestima, vai gerar traços perfeccionistas. Ao crescer, ela pode se tornar alguém que quer estar sempre no controle de tudo”, alerta a psicóloga Cristina, do Sabará Hospital Infantil (SP).
O psicanalista Thiago Queiroz chama ainda a atenção para o risco de a criança ficar “viciada” na aprovação alheia. Em outras palavras, com o tempo, passa a acreditar que seu valor está atrelado às suas conquistas. E, ao falhar, acredita que o perdeu. “Freud já dizia ‘como fica forte uma pessoa quando está segura de ser amada’. Essa noção começa em casa, com a família”, pontua.
Será que estamos exagerando? As estatísticas mostram que não. Uma delas, feita nos Estados Unidos, foi o pontapé inicial do livro de Jennifer B. Wallace. Em 2019, um levantamento sobre equidade na saúde global das crianças e adolescentes norte-americanos adicionou aqueles que frequentam escolas consideradas de alto desempenho, tanto públicas quanto privadas, aos grupos de risco, ao lado de crianças que vivem na pobreza ou em lares provisórios, assim como os filhos de imigrantes recém-chegados e de pais encarcerados.
Publicado pelas Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina (Nasen), órgão que atua como assessor de políticas públicas naquele país, o estudo mostrou que as crianças dessas escolas apresentam índices maiores de problemas mentais e de comportamento comparadas à média nacional. Embora não exista um dado semelhante no Brasil até o momento, muitos educadores observam tais evidências por aqui também. “A escola é o segundo núcleo de referência na vida de uma criança. Se aí se mantém a exigência da perfeição e da alta performance, ela segue se sentindo incapaz e insuficiente”, ressalta a pedagoga Elisa Possebon, da UFPB.
Nesse cenário, precisamos repensar aquela frase “o que você vai ser quando crescer?”, que temos o hábito de perguntar aos pequenos. “É como se a criança não fosse nada, só vai ser ao se tornar adulta. Mas criança é criança, não é um vir a ser. E essa fase precisa ser vivida plenamente para que ela possa sentir o valor que já tem”, conclui Elisa.
Celebre a sua criança
Se não é legal cobrar demais, também não dá para cobrar de menos, é claro. Qual a medida certa, então? Não há uma fórmula mágica, mas basicamente consiste em entender que o seu filho não precisa buscar excelência em tudo o que faz e celebrá-lo (isso mesmo) do jeito que ele é, com suas qualidades e defeitos. Muitos psicólogos, aliás, comparam a um luto essa experiência de desistir do ideal para aceitar o real – e garantem que, cedo ou tarde, todos os pais e mães vão passar por isso.
Para a mãe em tempo integral Joyce Dias, 32, aconteceu no dia em que o filho Isaac, 6, recebeu o diagnóstico de autismo três anos atrás. “A princípio, foi uma angústia. Como sou cristã, me apeguei a Deus. Um dia, enquanto eu chorava escondido na cozinha, senti que Ele falou comigo e perguntou ‘o que você mudaria no seu filho?’. Na hora, foi como se eu tivesse acordado. Meu filho é inteligente, alegre, divertido, carinhoso e saudável. Não precisa mudar nada. Nesse momento, comecei o meu processo de aceitação”, recorda-se Joyce, que também é mãe de Angelina, 3. Com grau moderado de autismo e não verbal, conforme a classificação utilizada nos EUA, onde vive com a família, Isaac já aprendeu a se comunicar com algumas palavras. “Sair do lugar de vítima e acolher meu filho do jeito que ele é foi certamente o primeiro passo para a sua evolução”, afirma.
E esse é o caminho. Afinal, a missão dos adultos é ajudar a criança a construir sua própria trajetória. É o que ressalta a professora Cláudia Maria da Cruz, de Curitiba (PR), que hoje atua como consultora educacional na rede pública. “Uma relação horizontal, de contribuição recíproca, com diálogo e sem violência, é a melhor saída. Quando colocamos a criança no centro da educação, não estamos retirando o adulto. Nós sempre seremos a sua referência”, explica. Na construção desse novo ser, claro, a parceria entre família e escola é fundamental para uma criação mais empática, sem limitar, e sim, integrar o papel de cada um. O professor, afinal, não está ali apenas para cobrar notas.
“Persiste ainda uma visão simplista de que a escola ensina e os pais educam. Mas é impossível traçar um limite. Em vez de se ater a essa discussão, escola e família precisam entender que, paralelamente à apropriação do conhecimento, deve acontecer o desenvolvimento das habilidades emocionais, porque essas coisas não estão separadas na cabeça da criança”, afirma Cláudia.
Um estudo publicado no Journal of Youth and Adolescence, em 2017, comprovou que vale a pena aliviar a pressão sobre as crianças para se concentrar no que de fato importa, ou seja, seu jeito de ser. Para chegar a essa conclusão, os cientistas perguntaram a mais de 500 alunos de escolas de alto desempenho nos EUA os valores que suas famílias priorizavam, incluindo três baseados em caráter (como generosidade) e três em conquistas (como entrar em uma boa faculdade). Aquelas cujos pais valorizavam tanto ou mais os valores relacionados à índole do que às realizações se saíam melhor na escola, tinham melhor saúde mental e quebravam menos regras.
“A lição? O que enfatizamos em casa realmente afeta o bem-estar de nossos filhos. Quando os pais mostram que qualidades como gentileza e respeito importam tanto quanto o sucesso, as crianças têm mais probabilidade de prosperar”, destaca Jennifer. Lembre-se: entre o real e o ideal, existem mil possibilidades.