Grupos na rede social reúnem mulheres tentantes e doadores de esperma e prometem procedimentos rápidos e mais baratos, sobretudo às que estão em relacionamentos homoafetivos. Por outro lado, método de inseminação caseira não é recomendado pela medicina e falta de parecer jurídico pode dificultar registro de dupla maternidade
A autônoma Luana Costa, 26 anos, não esconde a emoção ao falar da expectativa com a chegada do segundo filho, Matteo. Grávida de 38 semanas, ela e a mulher, Daniela Gutierrez, 30, já são mães da pequena Maitê, de 2 anos. Sem conseguir arcar com os custos de procedimentos oficiais de reprodução assistida, como fertilização in vitro (FIV) e inseminação artificial, elas recorreram às redes sociais – mais especificamente, ao Facebook – para conseguir concretizar o desejo da maternidade.
Foi em um deles que Luana conheceu o homem que aceitou doar seu material genético para que ela pudesse engravidar, por meio de inseminação caseira. O método, segundo as entrevistadas, consiste em ejacular dentro de uma seringa e injetar o sêmen no canal vaginal durante o pico de ovulação, que é mapeado por testes específicos ou pelo método da tabelinha.
“Buscava por uma pessoa com as mesmas características físicas que minha esposa e eu: branco, loiro e de olhos claros. Foram duas tentativas para ter a Maitê e somente uma para o Matteo”, conta.
Após calcularem a data da ovulação, Luana e Daniela marcaram de encontrar o doador em um hotel, uma opção muito escolhida entre as tentantes para preservar a privacidade. “Assim que ele entregou a amostra dentro da seringa para minha esposa, já saiu do quarto nos desejando boa sorte. Foram dois minutos entre a entrega da amostra e a inseminação em mim. Fiquei incrédula que daria certo.”
Enquanto nos casos de inseminação artificial realizados em clínicas médicas os doadores obrigatoriamente precisam ser anônimos, segundo uma resolução de 1992 do Conselho Federal de Medicina (CFM), não há nenhuma obrigatoriedade – logo, nenhuma barreira – no caso de inseminação caseira. Por mais que no Brasil o procedimento caseiro não seja recomendado pela comunidade médica (vamos retomar isso mais abaixo), também não é proibido por lei.
Neste contexto, os grupos no Facebook são uma brecha encontrada para buscar por doadores e realizar o procedimento mais rapidamente e por um preço infinitamente mais baixo. Segundo apurado por Marie Claire, uma tentativa de FIV no país pode variar entre R$ 20 mil a R$ 30 mil. Se houver uso de amostras recolhidas de banco de esperma, o valor pode aumentar em R$ 5 mil a R$ 9 mil.
Foram quatro tentativas, sendo três feitas por sua mulher e uma, a que deu certo, por ela mesma. “Ao todo, gastamos uma média de R$ 1 mil”, afirma. O valor foi distribuído entre locomoção do doador, hotel e material de coleta.
“O doador entra no banheiro com uma seringa de 10 ml e nos entrega minutos depois. Rapidamente já vai embora. Ele sugeriu que deixássemos o quarto escuro e o ar condicionado ligado. Dizem que mantém o esperma mais tempo vivo”, conta.
Como funcionam grupos de doação de sêmen e inseminação caseira no Facebook
Geralmente, os grupos são buscados por mulheres cisgênero em relacionamentos homoafetivos, motivo pelo qual alguns são identificados com as cores da bandeira LGBTQIA+. Há ainda mulheres em relacionamentos heterossexuais que não conseguem conceber naturalmente ou mulheres que querem viver a maternidade solo.
As postagens se dividem entre mulheres que compartilham seus diários de ovulação para pedir ajuda até posts de doadores que compartilham trocas de mensagens com as tentantes, que enviam fotos de seus testes de gravidez positivos. “Mais um positivo. Esse foi de primeira”, escreve um doador super colaborador de um dos grupos, ao compartilhar uma troca de mensagens com a tentante (agora grávida) no WhatsApp.
De maneira geral, é como uma grande sessão de classificados. As tentantes deixam suas localizações e, por vezes, descrevem o perfil de doador que estão buscando. Em uma das postagens, uma mulher pede por um “homem branco, de olhos escuros, cabelos castanhos e boca carnuda”. Outra pessoa busca um “doador negro ou pardo que esteja disponível para viajar” para uma cidade no interior de São Paulo.
Os doadores também compartilham galerias de fotos em que mostram suas características físicas e diferentes momentos da vida – inclusive fotos de quando eram crianças. “Tenho 22 anos, caucasiano, de origem argentina por parte de pai (não tenho tantas informações) e miscigenada por parte de mãe”, diz um deles, que também conta qual curso faz na faculdade e se tem problemas crônicos de saúde. Além disso, compartilham ter resultados de exames recentes de saúde para infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e contagem de esperma, por exemplo.
“De início, tive medo do que poderia dar errado. Medo do doador nos procurar para reconhecer a paternidade ou de doenças, por exemplo. Por isso demoramos cerca de um ano entre pensar, procurar e realizar a inseminação. Também nos comunicamos com várias tentantes para pedir indicações de doadores”, conta Angélica.
Inseminação caseira não é método recomendado
No Brasil, o CFM não recomenda a realização de inseminação caseira. A ginecologista e especialista em reprodução assistida Mylena Naves Rocha afirma que a prática é insegura e pode levar a transmissão de infecções, inclusive as sexualmente transmissíveis – tanto para a mãe quanto para o feto.
Os motivos são o uso de materiais impróprios e não esterilizados corretamente, aplicação que pode ser inadequada e o desconhecimento do status de saúde do doador e da composição da amostra seminal.
“Na reprodução assistida, o sêmen passa por diversas avaliações de morfologia, qualidade e genética que trazem mais segurança. Também é possível capacitar essa amostra para escolher os melhores espermatozóides, desde os mais ágeis aos de melhor qualidade morfológica”, explica.
Rocha afirma ainda que as taxas de sucesso de uma gravidez gerada por reprodução assistida são muito maiores do que nos casos de inseminação caseira por conta do processo qualificado, capaz de tornar a fecundação mais assertiva. Ela exemplifica que, no caso de mulheres com 35 anos, a taxa de sucesso por reprodução assistida é de 20%, enquanto o método natural (ou seja, por meio de relações sexuais) é de 10% a 15%.
“Há ainda a questão do anonimato, que pode fazer com que doadores busquem legalmente se envolver com o bebê, e falta de rastreabilidade, que pode aumentar os riscos de relação consanguínea no futuro entre pessoas gestadas com o esperma do mesmo doador”, diz Rocha.
“Tenho certeza absoluta que as que buscam doadores nestes grupos prefeririam o tratamento médico, mas por falta de condições estão tendo que recorrer a isso. Se alguém oferecesse tratamento médico de graça, a maioria aceitaria. Ninguém faz isso porque quer viver perigosamente, mas porque está tentando resolver a própria vida”, afirma.
Dentro deste cenário, Motta argumenta que o ideal é que os procedimentos sejam sempre realizados em clínicas e com supervisão médica. No entanto, considera falho pensar que procedimentos não autorizados, como a inseminação caseira, não acontecem.
“Poderiam ser menos arriscados ou perigosos se pudéssemos encarar essa situação em vez de simplesmente condená-la. Esses procedimentos acontecem todos os dias e, muitas vezes, de forma inconsequente por falta de orientação. Precisamos olhar menos com julgamento e mais com a preocupação de dar a assistência reprodutiva que a sociedade merece e precisa.”
A própria médica tem desenvolvido um projeto chamado Fertify, que busca tornar a reprodução assistida mais acessível, barata e rápida por meio de estimulação dos ovários.
Dupla maternidade por inseminação caseira chega ao STJ
Até o momento, não há legislação específica para tratar dos métodos de reprodução assistida recomendados pela medicina, mas existem resoluções do CFM e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que regulamentam o procedimento. No caso da inseminação caseira, não há uma jurisprudência consolidada. É o que explica a advogada Karla de Camargo Fischer, especialista em direito de família.
O atual conflito legal diante do tema é o momento do registro de nascimento da criança, no caso em que há duas mães. Desde 2023, o Provimento nº 149 do CNJ impõe que, nos casos de inseminação artificial e FIV, as clínicas devem emitir uma declaração, com firma reconhecida e autoria da diretoria, que ateste a realização do procedimento.
No caso da inseminação caseira, este documento não existe, o que pode impossibilitar que a criança seja registrada no nome das duas mães. “Neste caso, elas devem buscar o Poder Judiciário a fim de requerer autorização para que o registro seja feito em nome das duas mães”, explica a advogada.
Essa demanda tem crescido nos Tribunais de todo o Brasil, e não há unanimidade de como tratar o assunto. No entanto, a advogada diz que a maior parte das decisões têm concedido o registro das duas mães nos casos de inseminação caseira, mediante comprovação da relação filial.
Em maio deste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi acionado para se posicionar sobre a negativa de registros à dupla maternidade. Sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma deverá decidir se a cantora e musicista Simone Mello e a atriz e produtora Sheila Donio podem ser registradas juntas como mãe nos documentos da filha. Ambas enfrentam impedimentos legais há dois anos.
A decisão do STJ pode ajudar a pavimentar o caminho para outras famílias no futuro. Até o momento, não há data para que o caso seja julgado.