Mulheres que se arrependem de se tornarem mães relatam os desafios de lidar com as frustrações das expectativas criadas e os impactos da maternidade compulsória na sociedade
“Eu me arrependo de ser mãe, mas amo a minha filha. Eu costumo dizer que minha depressão pós-parto durou 9 anos. Quando a minha filha nasceu, percebi que imaginava uma coisa completamente diferente do que realmente foi e que o silenciamento que existia, e ainda existe, era tão grande que ninguém falava o quanto era difícil, pelo menos à minha volta”, conta Karla Tenório, atriz e criadora do movimento “Mães Arrependidas”.
Uma das pioneiras a falar abertamente sobre o arrependimento materno, a artista conta que a maternidade foi desejada por ela, mas que a realidade foi muito diferente do que a ideia romantizada da experiência.
“Eu quis ser mãe. Era casada e quis. Mas antes de querer, não queria. Era algo que realmente não fazia parte da minha personalidade. Queria mesmo ser atriz e viver a vida um pouco mais de forma individual, esse era meu direito e tudo certo”, revela ela, que conta que a primeira vez que pensou em ser mãe foi em uma viagem para a Índia, durante uma meditação. “Não quero desmerecer uma visão tão bonita, mas até hoje não sei se foi algo divino ou se foi fruto da maternidade compulsória, que tem um poder tão grande que acaba colocando na gente aquela ideia ilusória de que a mulher nasceu ou só será completa se for mãe”, complementa.
A maternidade é uma experiência que traz consigo uma série de emoções intensas e desafios. A ideia de ser mãe desperta diferentes expectativas em cada mulher, que quase nunca são correspondidas pela realidade. Por isso, não é incomum que algumas se deparem com um sentimento de arrependimento em relação à sua escolha de se tornarem mães.
“Muitas pessoas se sentem relutantes em admitir que gostariam de voltar à vida que tinham antes de ter filhos. A maternidade muda nossas vidas de várias maneiras, então não parece ser razoável esperar que todas as mães gostem da tarefa de criar os filhos”, explica a psicóloga especialista em emoções, Luana Ganzert.
“A maternidade compulsória é um conjunto de práticas sociais, políticas e culturais que levam as mulheres a se tornarem mães, sem que isso represente uma escolha própria. Como se elas fossem, na maioria das vezes, obrigadas a serem mães. Isso afeta a maneira da mulher ser e agir, o desempenho emocional, e muitas vezes também o seu funcionamento global como mulher”, complementa.
A influenciadora digital Marianne Gimenes, 22, viralizou recentemente nas redes sociais ao compartilhar um desabafo sobre as complicações da maternidade. Em conversa com a Marie Claire, esclarece que a pressão social em cima da mulher e a romantização da maternidade são cargas que ela não queria lidar quando engravidou, aos 17 anos. “Me arrependo de ter sido mãe sem ter nenhuma preparação psicológica, financeira, emocional. Sem ter maturidade o suficiente para lidar com tudo isso”, desabafa.
“Eu odeio a maternidade, mas eu amo a minha filha. São coisas completamente diferentes. A maternidade é cansativa, desgastante. Tá tudo bem odiar. Eu odeio a carga da maternidade e o peso que a sociedade coloca em nós que somos mães. Isso não tem nada a ver com o sentimento que nós temos pelos nossos filhos”, complementa.
“Me incomoda a ideia de que depois que você se torna mãe, você não é mais uma pessoa. Você não tem vontade, não tem desejo, não tem nada: é só mãe. Colocam isso na nossa cabeça. Uma vez li uma frase que dizia: ‘Depois que me tornei mãe, entendi porque a minha mãe gostava do pescoço do frango’, dando a entender que ela daria a melhor parte para o filho. Só que eu também gosto do peito do frango, vamos dividir isso aí, entendeu?”, conta Rita de Cássia, de 59 anos, mãe de uma filha de 36.
“Esse sentimento não é um privilégio da geração de agora, com certeza. A minha avó, a minha bisavó, a minha mãe também sentiram a mesma coisa, só que nunca puderam falar”, complementa ela, que faz parte do movimento criado por Karla Tenório que acolhe mães arrependidas.
O mito do amor incondicional materno é enraizado em nossa sociedade e se baseia na crença de que as mães são naturalmente programadas para amar seus filhos de maneira inquestionável, independentemente das circunstâncias. Karla Tenório reflete sobre a importância da desconstrução desse sentimento, que impõe expectativas irrealistas às mães e ignora a complexidade das relações maternas.
“Não existe amor incondicional ininterrupto. Acredito que a gente é tocada por momentos sublimes, que são quase que uma expansão, uma bomba de amor, mas que isso acontece em todas as relações de doação e troca. Não é única de mãe e filho”, diz a atriz.
“Isso é uma mentira criada justamente para que a gente pudesse ficar em casa e não largasse nossos filhos para, sei lá, transar, trabalhar, fazer o que quiser, igual os homens fazem. Eles dizem: ‘Você vai ser tocada por algo que nenhum homem é capaz de sentir’. Mentira, todos são capazes. Homens e mulheres. Mas é óbvio que a construção social vai impedir, dificultar ou facilitar esse amor”, complementa.
“Eu escutava muito: ‘Nossa, quando a sua filha nascer, vai ser um amor tão grande que você não vai saber nem explicar’. E eu segui a gravidez com a expectativa de que no momento que a minha filha nascesse e eu a pegasse no colo, todos os problemas iriam sumir”, conta a Marianne.
“E não é assim que funciona. Todo relacionamento é uma construção. Eu não tive todo aquele encanto pela maternidade”.
A psicóloga Luana explica que o sentimento de arrependimento materno pode estremecer o vínculo entre mãe e filho, por isso é importante o cuidado com os sentimentos de cada um. “É preciso dizer que arrependimento não significa violência ou abandono. Essas mulheres amam seus filhos, cuidam e são responsáveis por eles, mas sofrem, quase sempre em silêncio, por desejarem nunca terem sido mães. O vínculo festivo materno pode ficar estremecido. Pois as relações são construídas através do sentir. Se um filho sente rejeição vinda da mãe, não pela falta de amor, mas pela mãe não ter escolhido ser mãe, sentimentos de rejeição podem ser registrados pela criança, que futuramente pode desenvolver problemas emocionais como ansiedade, depressão, entre outros. Se esse sentimento existir na sua relação com seu filho, procure ajuda profissional, orientação e cuidado com os sentimentos que são de cada um, para que os mesmos não sejam transferidos ao outro com dor”, explica.
Karla Tenório também reforça a importância de incluir os filhos na discussão e da compreensão de que eles não têm culpa do sentimento de arrependimento materno.
“Hoje, pra mim, o arrependimento materno é sinônimo de deterioração da Saúde Mental. O amor que você sente pelo seu filho, pela sua filha, a pipoca, passear na praia, aquele sorriso lindo, delícia, aquela relação maravilhosa, não tem nada a ver com a sobrecarga, a falta de creche, a falta de políticas públicas, a deterioração da Saúde Mental, o estupro, a falta de legalização de aborto, o abandono paterno”
“É muito melhor falar a verdade para criança do que mentir, porque ela está sentindo, ela está convivendo com você 24 horas por dia. Eu decidi incluir minha filha neste processo de sofrimento. Hoje, ela sabe que a culpa não é dela. Estou dando afeto, atenção, estudando com ela, hidratando os cachos dela, dando comida. Ela recebia o que ela precisava, nós tínhamos os nossos momentos juntas, mas na hora de educar eu odiava. Na hora de perder o meu tempo, a minha liberdade, a minha visibilidade, eu odiava. Eu não gostava de existir só no tempo que me sobra nas brechas do dia. Nessas horas, eu precisava explicar pra ela. Por isso, ao contrário do que as pessoas pensam, é importante incluir os filhos para que eles saibam que a culpa não é deles”, diz.
“Devemos acabar com os estereótipos que levam à maternidade compulsória, aquela ideia de que somente se é uma mulher de verdade quando se é mãe”, explica a psicóloga Luana Ganzert.
“A maternidade não deve ser briga entre feministas e machistas, deve ser uma escolha legal, consciente e leve. Devemos inibir essa obrigação atribuída à mãe de ficar e ‘chefiar’ a família na ausência dos pais. Buscar pelos direitos sobretudo na criação dos filhos. Falar mais sobre o assunto e estar ao lado das mulheres, tanto as que desejam, quanto as que não desejam ser mães. Sem julgar ou levantar testemunho. Cada um sabe de si e das escolhas que pode fazer”, finaliza.
Karla Tenório vai estrear o espetáculo autoficcional “MÃE ARREPENDIDA”, que fala do arrependimento materno, em julho, no Rio de Janeiro. A peça propõe uma reflexão profunda conduzida pela atriz sobre as nossas estruturas sociais e viaja pelo lado sombrio e oculto da maternidade de quem vive na pele as desmesuras do arrependimento, e convida a plateia à curas e transformações.