Bandidos vasculham redes sociais, se aproveitam da fragilidade e roubam conforme a capacidade da vítima
A aposentada de 71 anos, residente em Campo Grande, fazia o almoço quando recebeu a ligação da sobrinha, Júlia*, residente no interior de São Paulo. A jovem estaria usando o celular da mãe e, com problemas no aparelho, pediu ajuda com a transferência de R$ 959 para a conta de um amigo.
O dinheiro foi repassado e o golpe foi dado, mais um dos centenas aplicados no país, principalmente em idosos. A filha da vítima, inconformada com a situação, confrontou o golpista e teve como resposta o deboche: um emoji mandando beijos e o recado “perdeu, manda mais”.
O valor, alto para o bolso da aposentada que ganha um salário mínimo, não é aleatório, segundo informações da Polícia Civil. Os golpistas escolhem as vítimas a dedo, vasculham redes sociais e acessam informações pessoais, até na deep web, para saber o quanto podem arrancar de cada um.
No primeiro contato, golpista se passa por sobrinha e diz que está com problemas no aplicativo (Foto/Reprodução)
O caso da aposentada foi registrado na 7ª delegacia de Polícia Civil na segunda-feira (15). A idosa aguardava a ligação da sobrinha para saber como estava o tratamento de câncer da irmã, uma preocupação recorrente. “Minha mãe perdeu irmão há um ano de câncer, então, ela está abalada, sensível com tudo, eles se aproveitaram disso”, disse a servidora de 42 anos, filha da vítima.
A “sobrinha” mandou mensagem de número que não era dela, mas a foto do WhatsApp era da irmã da vítima. A justificativa é que estava usando outro aparelho e deixado o antigo para ligações de trabalho.
Na conversa, sempre por escrito, Júlia pergunta para a tia se o aplicativo bancário dela está funcionamento normalmente, pois ela não consegue enviar Pix. Reclama que o sistema deixa as pessoas “na mão” quando mais precisam e pede para que a aposentada deposite o dinheiro, como favor para um amigo que está aguardando o pagamento. “(…) até amanhã voltando meu aplicativo do banco ao normal já devolvo”.
Preocupada com o tratamento da irmã, não teve dúvidas que o pedido era real. Ligou para a filha, relatando o que tinha acontecido. “Mãe, isso é golpe”, alertou a servidora. Porém, a mãe estava irredutível e disse que faria o depósito da quantia pedida, R$ 959. A filha estava no trabalho e acabou não falando mais com a aposentada sobre o pedido de Júlia.
No dia seguinte, a servidora resolveu cobrar a prima. “Ela se assustou, disse que não pegou dinheiro”, contou a servidora. Em São Paulo, a família fez o boletim de ocorrência, já que o nome de Julia foi usado no golpe. Pediu para que mãe encaminhasse as conversas (prints acima) e teve certeza da fraude.
Em Campo Grande, o registro foi de estelionato contra idoso (artigo 171, combinado com parágrafo 4º do Código Penal), que aumenta a pena prevista de quatro a oito anos por se tratar de crime contra pessoa vulnerável. “É o golpe clássico, não é? E tem muito idoso caindo”, lamentou a servidora. “Minha mãe está arrasada, morrendo de vergonha”.
Ao vasculhar os dados do celular nas redes sociais, descobriu que o mesmo número de telefone foi usado em golpe aplicado contra outra mulher, em Poços de Caldas (MG). Com ajuda de um amigo, encontrou o CPF usado na conta em nome de rapaz em Mato Grosso, que teve os dados usados ilegalmente.
Indignada, entrou em contato com o número usado pelo golpista. “Xinguei muito, estava brava e ele começou a debochar”, contou. “Vou chorar”, dizia o golpista. “Perdeu, se contente”. “Tá carente? Cabou o sermão?”.
Fragilidade – Este ano, Mato Grosso do Sul registrou 3.714 casos de estelionato, 1.362 somente em Campo Grande, segundo dados da Sejusp (Secretaria Estadual de Justiça e Segurança Pública). Na estatística, os tipos de golpes não são individualizados, mas muitos dos registros referem-se a casos semelhantes ao ocorrido com a aposentada.
A investigação é feita na delegacia da área, mas, quando o desfalque é acima de 100 salários mínimos, ou seja, R$ 141,2 mil, é encaminhado para a Dedfaz (Delegacia Especializada de Repressão aos Crimes de Defraudações, Falsificações, Falimentares e Fazendários).
Na Dedfaz, já aparecem vítimas que perderam R$ 100, R$ 400 e até R$ 600 mil. O valor é muito mais alto, mas o modus operandi se mantém. “Geralmente é o mesmo roteiro, é o carro quebrado na estrada, o cartão bloqueado, um problema na conta”, cita a titular da delegacia, Deborah Mazzola.
Deborah diz que os golpistas estudam a capacidade econômica da vítima antes de agir, justamente para arrancar o que é possível de cada vítima. “Eles não vão a esmo, usam redes escondidas, a deep web, acessam dados que nem a polícia consegue”, contou. “Eles se utilizam do elemento surpresa, do desespero e costumam pegar idosos, que não têm conhecimento avançado em tecnologia”, explica.
Deborah diz que a grande dificuldade é rastrear os bandidos, que utilizam CPFs de laranjas, de criminosos que vendem os dados e de terceiros, também vítimas das quadrilhas. Com esses dados, cadastram celulares pré-pagos, descartáveis depois das fraudes.
“Quando a gente acha que está chegando perto, tem esse entrave, é um absurdo; até para entrar em prédio você deixa mais dados”, avaliou a delegada.
Segundo dados da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações), até fevereiro deste ano, foram cadastrados 107.167.871 telefone pré-pagos no Brasil.
Como alerta, a delegada orienta que é preciso ter calma. Sempre que receber mensagem de pedido de depósitos, tente entrar em contato, preferencialmente, por chamada de vídeo com o parente ou amigo que solicitou a ajuda.
No site da Anatel, consta que, desde 2021, as operadoras adotam procedimento para cadastrar linhas pré-pagas, como forma de deixar mais criterioso o procedimento, no qual o consumidor precisará informar seus dados pessoais, enviar uma foto (selfie) e do documento de identificação.
Após inserir o chip pré-pago comprado e ainda não utilizado no aparelho, o consumidor receberá uma notificação da prestadora para iniciar o procedimento de ativação da linha. Em seguida, deverão ser informados dados referentes ao número do Cadastro de Pessoa Física (CPF), a data de nascimento e o CEP de residência. Tais informações são verificadas, pela prestadora, para que o procedimento de ativação prossiga.
Sobre a facilidade citada pela delegada, a reportagem aguarda retorno da assessoria para complementação do texto.
Um cuidado adicional é consultar seu CPF regularmente para saber se foi usado para cadastrar telefone pré-pago. Abaixo, você aprende o passo a passo para tentar evitar ser vítima dos golpistas.
*O nome da sobrinha foi trocado para proteger a identidade das vítimas.