‘Ser a mulher negra de turbante que está à frente de projetos importantes de grandes marcas é uma responsabilidade enorme’, escreve a relações-públicas Gabriela Moura
Eu não lembro quando foi a primeira vez que me vi sendo a única negra em um lugar, mas possivelmente na faculdade. Na infância eu convivi com outros negros na escola na periferia de uma cidadezinha conservadora de interior, já tinha noção do que era ser uma negrinha fedida, uma macaca, e outros apelidos “carinhosamente” concedidos por coleguinhas brancos, mas foi no ensino superior que comecei a me ver como um “ser racializado”.
Só que isso tem mais de uma década, e hoje eu já encontro um sem-número de textos com desabafos de jovens negros contando sobre serem os únicos em ambientes brancos e elitizados (shoppings, galerias de arte, museus, universidades, empresas). E assim é comigo.
Na agência onde eu trabalho somos três negros, mas eu sou a única de pele muito escura. Meus colegas de trabalho já conhecem uma boa parte da minha história, mas ainda que eu saiba que posso encontrar neles um apoio de aliados, ainda que eu tenha tido já boas conversas sobre privilégios da população branca e tudo mais, ainda sinto um peso nos ombros ao falar sobre meu passado e como ele afeta meu presente: ter sido uma menina negra pobre não me deu nenhum complexo de inferioridade, mas eu estaria mentindo se dissesse que não tenho uma série de traumas incrustados em minha alma. E enfrentar isso é um esforço que eu me recuso a chamar de heroísmo, mas não deixa de ser algo bem mais penoso do que para as pessoas que nunca foram discriminadas por sua cor e os estereótipos historicamente fincados no imaginário popular.
O tempo passou desde que eu era a criança na cidadezinha sendo xingada de nomes que eu nem gosto de lembrar. Me formei em uma excelente universidade, comecei a estudar árabe, entrei na pós-graduação em Sociopsicologia, escrevi livro, fundei uma consultoria com outros profissionais negros, fiz trabalho voluntário, liderei projetos de comunicação para marcas gigantes, colecionei elogios de gestores, diretores de marketing e até do presidente da OAB de São Carlos e de celebridades como Lázaro Ramos e Pedro Bial.
Sem nenhum apego à meritocracia, digo que isso só foi possível unindo minha vida profissional, minha história e as oportunidades que recebi graças a políticas públicas de reparação histórica – esforços que os movimentos negros fazem há décadas, e que seria injusto creditar a partidos políticos que apenas buscam coalizões temporárias na corrida pelo poder.
Já tem uns três anos que eu comecei a pesquisar, por conta do curso de pós-graduação em Sociopsicologia, os efeitos da exclusão racial na psique humana. Eu percebi que nós, militantes e profissionais negros, já estávamos afiadíssimos nos nossos conhecimentos sobre os efeitos sociais da exclusão. Não significa que não precisávamos mais estudar aquilo, mas ao menos o primeiro passo já havia sido dado. Nas palestras e aulas que eu dava, já havia decorado um punhado de fatos históricos que me permitiam explicar para os meus alunos por que políticas de reparação são necessárias e quais cenários da nossa sociedade hoje são reflexos da escravidão e da exclusão social enfrentadas pela população negra recém-liberta no período pós-abolição.
Mas faltava algo. Alguma peça desse perverso jogo de privilégios não estava ali. Uma situação vivida na época fez cair a grande ficha: o racismo desgraça a sua cabeça. Em um primeiro momento pode parecer óbvio, afinal, claro que passar por situações cotidianas de micro-agressão forma um redemoinho na cabeça do sujeito. Mas saber disso por mim ou por outras pessoas não bastava. Eu levava muito em conta as vivências das pessoas negras que diziam ter sua saúde mental afetada, mas eu precisava de evidências científicas para poder me munir de argumentos contra quem quer que ousasse me acusar de vitimismo. E consegui.
Primeiro com o livro Entre o Encardido, o Branco e o Branquíssimo, de Lia Vainer Schucman, depois com a obra Psicologia Social do Racismo, de Maria Aparecida Bento, e com incontáveis teses e pesquisas sobre o que o racismo pode fazer com a cabeça de alguém. Esses materiais me fizeram entender que a constante melancolia de meus amigos militantes, a insônia, alternada com a hipersonia, a constante tensão nos ombros e até distúrbios alimentares estavam intimamente ligados à sensação de solitude que o racismo provoca.
É estar sozinho mesmo cercado de gente.
E isso tem tudo a ver com ser o único negro em um espaço branco. Estudar tanto o problema me levou à conclusão de que eu precisava fazer algo. Não sou psicóloga, não tenho as ferramentas para auxiliar pessoas como se fossem meus pacientes, então o caminho trilhado foi como relações-públicas, profissão que exerço há mais de dez anos.
De tempos pra cá percebi, otimista, uma movimentação que busca inserir mais negros no mercado da comunicação, mas, mais uma vez, o bichinho da inquietação me picou e algo estava incompleto, ao meu ver. Eu via que muito se falava sobre representatividade na publicidade, castings mais diversos e mudanças de discurso que tornavam as propagandas mais abrangentes. Os comerciais pararam de ter aquela cara de “família sueca”, cabelos crespos começaram a surgir em revistas, mas pouco ainda se fala sobre como lidar com as relações trabalhistas diante de novos cenários de diversidade. Como RP eu passei a abranger em minhas palestras alguns pilares: o que é diversidade dentro das empresas, a importância de haver mais negros no corpo de funcionários, como uma equipe que reflita a realidade da população brasileira deixa o ambiente muito mais criativo e leve.
Só que se eu conseguisse resolver um problema histórico em tão pouco tempo, das duas uma: ou eu ganharia o prêmio Nobel, ou seria a Mulher Maravilha. Acontece que eu sozinha não possuo poder sócio-político para uma mudança digna de um prêmio Nobel (não por enquanto, quem sabe um dia?) e nem tenho vocação para heroína. Por isso, estou nesta página hoje.
Desfilar por corredores com turbantes coloridos e camisetas com a frase “I met God, She’s black” era só uma brincadeira, no começo. Mas comecei a ver em mim mesma uma coletânea de símbolos e atitudes de força que me faziam praticamente uma estrangeira em meu ambiente de trabalho. Aqueles deixaram de ser apenas acessórios de moda – para os quais, admito, eu nem dava tanto valor assim – para se tornarem símbolos de resistência.
Na minha cabeça, o que eu ganhei foi a chance de inspirar outras mulheres negras, assim como sou inspirada por tantos profissionais que me encantam, como o Dr. Carl Hart, que definitivamente é uma das minhas pessoas preferidas no mundo. Ao conhecer aquele neurocientista que caminha calmamente em congressos internacionais com seus dreads, eu fui apresentada a uma força que sabia que tinha, mas havia esquecido: o direito de ser eu mesma em meu ambiente, sem precisar vestir a máscara branca citada por Franz Fanon em sua obra mais famosa.
Ter a consciência dos efeitos psicológicos do racismo estrutural tão fortemente presente em nosso país me deu novos meios para enfrentar o problema. Entendendo a gênese de tudo isso, comecei a entender como atuar melhor e sair do óbvio.
O caminho a trilhar ainda é longo. Em um país onde cerca de 54% da população se declara negra, onde a maioria dos pobres ainda é negra e onde a maioria das vítimas de violência policial é negra, eu ainda sou uma exceção. Ser a mulher negra de turbante que está à frente de grandes projetos de grandes marcas é uma responsabilidade enorme.
Gabriela Moura é relações-públicas de uma grande agência de publicidade, escritora e cofundadora do coletivo Não Me Kahlo. É formada em idioma e estudos árabes pelo Centro Sírio de São Paulo