Ter preocupação estética e capacidade intelectual ao mesmo tempo é uma conquista recente que vamos segurar com toda a força
Cresci numa família em que roupa e tratamento estético eram vistos como futilidade. E dá pra entender, já que na década de 1980 as mulheres ainda precisavam se masculinizar para conquistar espaços. É importante lembrar que durante séculos o mundo pregou a separação clara entre o universo feminino e o masculino, e cuidar da estética, se preocupar com a roupa, cuidar da unha e do cabelo era coisa de mulher. Assim como fazer faculdade, votar e trabalhar fora era coisa de homem. Claro que em 1980 o cenário já tinha mudado um tanto, mas o ranço dessa cultura ainda estava muito impregnado na sociedade. E, para a minha família, não havia negociação: tínhamos que estudar, ser inteligentes e abraçar as lutas feministas. Se o preço fosse dar uma masculinizada no visual e taxar o cuidado com a aparência de fútil, pagaríamos por ele.
Ser sexy, gostar de moda e ser inteligente ao mesmo tempo é uma conquista recente. E posso dizer com muita tranquilidade que conquistei esse espaço. Com o passar dos anos, fui aprendendo que dava sim para abusar da sensualidade, da maquiagem e da elegância estética sem que isso depusesse contra minha capacidade intelectual. Não foi um caminho simples. Nele, encontrei resistência de pessoas próximas, muito julgamento e, claro, assédio de gente desatualizada que ainda acha que a roupa é um convite (até quando?). Ao meu lado, via algumas mulheres que, no extremo oposto, foram criadas pra casar, ter filhos e serem elegantes conquistando o espaço intelectual, o mestrado e um cargo alto. E juntas fomos entendendo que, voilá, a gente pode o que a gente quiser. Hoje parece óbvio, eu sei. Mas eu juro pra vocês que não era.
Uma etapa tinha sido vencida. Em festas e eventos eu podia tudo, mas no trabalho ainda havia uma barreira. Desde que adentrei a primeira redação onde trabalhei, em 1999, percebi que existia uma cultura de passar despercebida que fazia com que as mulheres se masculinizassem para trabalhar. Eu lembro (com vivacidade devido à pequena inveja que sentia) como as jornalistas de moda e beleza eram as únicas com autorização velada para ousarem – e vejam, essa autorização não era bacaninha, não, vinha cheia de preconceitos que diminuíam algumas áreas da profissão. Mas fato é, que pra mim, como repórter de saúde, sobravam as camisas e as calças sociais. Tudo resquício de uma forma antiga de ver o mundo que fazia uma conexão direta da roupa bonita, colorida e um pouco mais ousada com futilidade ou, claro, segundas intenções.
É louco como até hoje a gente vê uma turma achando que quando uma profissional está elegante é porque quer seduzir alguém ou conseguir algo com seu capital sensual. Esse tipo de pensamento é tão nocivo quando enraizado. E, vejam, não estou defendendo que a mulherada vá trabalhar de barriga de fora num escritório de advocacia. Existem códigos de vestimenta em cada profissão e é interessante que sejam respeitados, contando que eles não sejam absurdos. Mulher não poder entrar de calça comprida no Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já foi uma regra absurda. Caiu em 1997 – e foi tarde.
Hoje, a maioria já entendeu que uma bunda semi-vestida e rebolando pode significar empoderamento, assim como uma jornalista de vestido rodado significa apenas uma jornalista transbordando elegância. Também espero que tenham entendido que a jornalista elegante pode também ser a bunda semi-vestida empoderada.
E tem uma coisa que descobri trabalhando na televisão: fica bem mais fácil fazer perguntas incômodas ou polêmicas com uma roupa glamourosa. Isso porque estar elegante dá poder, dá segurança e uma certa empáfia bem-vinda a jornalistas que têm compromisso com a notícia.
E qual o limite entre empoderamento e exagero? Bom, essa é uma reflexão para fazermos a cada situação específica, usando todo nosso bom senso e se necessário a opinião de nossas parceiras de trabalho. Claro que sempre vai ter gente disposta a usar nosso jeito, nossas roupas, nossa maquiagem ou cabelo para nos taxar ou diminuir. Para esses, a gente manda um calendário e pergunta: que ano é hoje?