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Ser mãe na prisão: conheça a situação da maternidade no cárcere

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O fato de as mulheres ainda serem vistas socialmente como as principais responsáveis pelos cuidados de filhos faz com que a prisão afete diretamente as crianças

Luanas, Marias, Keilas, Jussaras. O que todas elas têm em comum? São mulheres em situação de cárcere no Brasil, e tiveram o azar de conjugar esta realidade com o fato de que também são mães em um sistema prisional despreparado para garantir seus direitos como mulheres e cidadãs. Nesta matéria, em que divulgamos a mais recente pesquisada realizada sobre maternidade no cárcere, refletimos sobre como a condição prisional no Brasil afeta diretamente a vida das crianças.

Dentre as mais de 34 mil mulheres encarceradas no Brasil, milhares são mães e únicas responsáveis por seu filhos. Muitas delas, foram presas por delitos como furto de pomada para assaduras de bebê, ou respondem pelo crime de tráfico de drogas do companheiro.

Atualmente, no Brasil, há mais de 34 mil mulheres encarceradas – a maior parte delas por tráfico de drogas

 

Acaba de ser lançado o relatório #MulhereSemPrisão, pesquisa realizada pelo projeto “Justiça sem Muros”, da organização de Direitos Humanos ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), que avalia em que situação essas mulheres estão, incluindo milhares de mães, únicas responsáveis pela criação e sustento dos filhos.

Com um trecho especificamente dedicado a investigar a condição da maternidade nas prisões, o documento revela, entre outros dados alarmantes, que apenas 34% das celas femininas apresentam condições adequadas para receber gestantes. Nas celas mistas, este índice cai para 6%.

O que esses números significam?

Para Surrailly Youssef, advogada e Pesquisadora do projeto, a estrutura do cárcere é apenas mais um componente da violação de direitos dessas mulheres. “A prisão representa uma quebra de laços de cuidados e a desestruturação da família”, afirma

“As gestantes e lactantes presas são privadas de seu direito à saúde materna, com sua exposição a gravidez de risco, sem qualquer cuidado pré e pós-natal”

Essas constantes violações fazem parte da rotina de milhares de mulheres e perpetuam uma lógica que coloca os direitos humanos em último lugar na fila de importâncias do sistema prisional.

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Dentre as mais de 34 mil mulheres encarceradas no Brasil, milhares são mães e únicas responsáveis por seu filhos. Muitas delas, foram presas por delitos como furto de pomada para assaduras de bebê ou respondem pelo crime de tráfico de drogas do companheiro.

  • Além do alto número de mulheres presas que são mães, de acordo com o que pudemos observar nas entrevistas, é muito comum também que elas exerçam o papel de chefes de família, sendo as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos e por vezes até de pais, irmãos, sobrinhos e netos.
  • O fato de as mulheres serem as principais responsáveis pelos cuidados
    de filhos ou outros parentes faz com que a prisão desestruture o or-
    çamento familiar e também a vida de todos aqueles que dependiam de
    seus cuidados, o que é ainda mais grave para as crianças. Como afirmou
    Luana: “meu filho só tinha eu, eu e eu”. (Fonte: Relatório Mulheres Sem Prisão)

Conversamos com Surraily para entender como essa estrutura fragilizada pode ser alterada e quais os impactos dessa realidade na vida das mulheres e das crianças.

Lunetas – Qual é o panorama geral da situação da maternidade no cárcere hoje? O que mudou do último relatório para cá?

Surrailly Youssef – As informações sobre a maternidade de mulheres presas ainda são muito invisibilizadas pelas peças processuais analisadas pela pesquisa (Autos de prisão em flagrante, Decisão Judicial, Habeas Corpus e Denúncia), de forma a dificultar a criação de políticas públicas voltadas para essa situação.

O INFOPEN Mulheres não traz dados sobre a quantidade de mulheres encarceradas que são mães, se limitando a trazer números sobre a infraestrutura das unidades prisionais que atendem gestantes e lactantes.

Segundo INFOPEN Mulheres, apenas 34% das unidades prisionais femininas apresentam cela ou dormitório adequado a gestantes, sendo que este número é reduzido para 6% em unidades mistas

A construção do panorama geral da situação da maternidade no cárcere deve partir do dado que demonstra existir um alto número de mulheres presas que são mães e que elas são as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos.

“A prisão representa uma quebra de laços de cuidados e a desestruturação econômica da família”

Ademais, é preciso levar em consideração o fato de que as gestantes e lactantes presas encontram-se privadas de seu direito à saúde materna, com sua exposição a gravidez de risco, sem qualquer cuidado pré e pós-natal. A estrutura do cárcere é mais um componente da violação de direitos dessas mulheres.

Conforme relatado por Helena*, entrevistada para o relatório #MulhereSemPrisão do ITTC, as celas não têm capacidade de garantir os cuidados necessários a uma mulher grávida:

¨A gente dorme de valete. Eu durmo com a outra companheira grávida. Tem 12 camas e 18 mulheres na cela. Aí dorme na praia. No banheiro, tem as garrafas de água que a gente coloca para pegar água para tomar banho gelado”

Na situação concreta de violações no cárcere, pouco mudou na realidade das mulheres presas desde o último relatório do ITTC, Tecer Justiça. No entanto, o que observamos de mudanças foi a ampliação de previsões normativas que consideram a questão de gênero para garantir que a liberdade da mulher submetida a justiça criminal, como a publicação do Marco Legal da Primeira Infância – que amplia as hipóteses de prisão domiciliar para mulheres – e a tradução oficial das Regras de Bangkok no Brasil, que ocorreram no dia 8 de março de 2016.

 

Mães encarceradas

A maioria delas é mãe e está longe dos seus filhos e dos seus lares. É provedora do lar e possui dependentes. Essas mulheres foram presas por diversos motivos, mas nem tão diversos assim: mais da metade delas por envolvimento com o comércio de drogas. De maneira geral, as mulheres presas hoje no Brasil faziam transporte ou comerciavam pequenas quantidades de drogas. Ou faziam consumo próprio.

Essas mulheres deveriam mesmo estar encarceradas?

Seria esse o único caminho ou a prisão é a penalidade sempre priorizada por um Judiciário excludente que reproduz suas práticas sem considerar a assimetria de gênero?

(Fonte: Mulheres Sem Prisão)

Lunetas – Quais os dados mais alarmantes que o Relatório deste ano revela?

Surrailly Youssef – O dado mais alarmante da pesquisa é a ausência da instrumentalização das especificidades de gênero por parte dos atores judiciais. A aplicação de elementos de gênero na tomada de decisão, nas peças processuais da defesa ou mesmo da acusação tem um desdobramento importante para mulheres, devido a existência de dispositivos legais que garantem a liberdade, em razão da utilização de aspectos de gênero.

Um exemplo marcante da pesquisa é que apenas 7 das 258 decisões judiciais analisadas fizeram menção a questões de gênero.

Contudo, 3 dessas decisões tratavam da revista vexatória como circunstância que enseja a prisão, e não como grave violação de direito da mulher que passou pela humilhante invasão de seu corpo.

A Defensoria Pública também não utiliza as questões de gênero para pedir a liberdade da mulher, tendo os pedidos de prisão domiciliar em virtude da maternidade ocorridos apenas 4 vezes.

O Ministério Público tem uma atuação de meramente legitimar e reproduzir a versão da polícia, e as questões de gênero também apareceram em apenas 4 denúncias, em duas delas para agravar a situação criminal da mulher, que tinha sido presa por meio do procedimento ilegal da revista vexatória que obriga mulheres que visitam presídios a tirar a roupa, agacharem e mostrarem suas partes íntimas.

Lunetas – O relatório apresenta algum dado sobre o impacto do afastamento da mãe na vida da criança?

Surrailly Youssef – O encarceramento de mulheres impacta toda a estrutura familiar, e afeta especialmente as crianças. As mulheres entrevistadas para o relatório #MulhereSemPrisão com filhos menores de seis anos, destacaram as dificuldades das crianças em entenderem o contexto ao redor da prisão. Sendo privadas do direito de exercer a maternidade, essas mulheres apenas acompanham o processo de desenvolvimento dos filhos por informações de parentes.

Em muitos casos, os familiares não apresentam condições de assumir os cuidados das crianças e para as mulheres estrangeiras esse impacto é ainda maior, visto a ausência de familiares no Brasil.

Há relatos também de mulheres que perderam o poder familiar sobre seus filhos em outras vezes que tinham sido presos, e disseram que esse vínculo materno nunca mais se restabeleceu.

Lunetas –De que forma a exclusão da mulher/mãe do mercado de trabalho e a responsabilização única da mulher como responsável pela criança afeta sua entrada no crime?

Surrailly Youssef – As diversas vulnerabilidades, como a baixa escolaridade, falta de acesso a atividades profissionais que permitem auferir maior renda, dupla jornada de trabalho, responsabilidade precípua pelo sustento dos seus filhos, filhas e familiares, perpassam o cotidiano das mulheres e são circunstâncias que se relacionam com os motivos que foram por elas elencados nas entrevistas. Entretanto, essa colocação pretende passar equivocada perspectiva vitimizante do ingresso da mulher no sistema penal.

As entrevistas realizadas na pesquisa demonstraram que as circunstâncias acima apontadas se interseccionam com um processo de escolha baseado na sua realidade concreta, como a necessidade de ser/ter uma fonte de renda compatível com o seu cotidiano de cuidados de filhos, familiares e dependentes.

“Entendemos que o melhor caminho para mudança desse cenário é o desencarceramento”

Lunetas – Quais os principais avanços do Marco Legal da Primeira Infância?

Surrailly Youssef – O Marco Legal da Primeira Infância é uma lei que estabelece princípios e diretrizes para orientar como devem ser formuladas as políticas públicas em relação à primeira infância, que vai desde a concepção até o seis anos de idade. Com relação à esfera penal, ela trouxe alterações ao Código de Processo Penal que representaram avanços normativos. Trouxe a obrigatoriedade da qualificação do indiciado ou indiciada e do acusado ou acusada informar sobre o número de filhos e filhas, suas idades, seu têm algum tipo de deficiência, e o nome e contato de alguma pessoa que possa se responsabilizar pelos seus cuidados. A alteração legislativa mais sensível, no entanto, diz respeito ao acréscimo das causas que possibilitam a substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

A primeira alteração diz respeito à possibilidade de a mulher grávida poder cumprir o período de prisão cautelar em sua residência em qualquer mês de sua gravidez e não mais apenas a partir do 7o mês como antes.. Outra hipóteses de prisão domiciliar se dá quando a mulher ou o homem, de forma incondicional, for a única ou único responsável, pelos cuidados de filhos de até 12 (doze) anos de idade incompletos ou se imprescindível aos cuidados especiais de pessoa com deficiência, antes essa possibilidade ocorria apenas para mulheres com filhos até 6 anos.

 

Lunetas –No caso de mulheres gestantes, quais os direitos da mulher hoje? E no pós-parto imediato, como funciona?

Surrailly Youssef – A mulher gestante presa tem os mesmos direitos das demais mulheres, devendo ter acompanhamento pré-natal e pós-natal pelo SUS, bem como a licença maternidade. Contudo, na prática, esses direitos não são efetivados. A infra estrutura prisional é precária e não atende as demandas dessas mulheres.

Com o nascimento do seu filho, em que a pese a Lei de Execução Penal fale em prazo mínimo de 6 meses, esse período acaba funcionando como prazo máximo, o que faz com que essas mulheres vivam em um curto período uma experiência de hiper e hipo maternidade. Além disso, o tempo de cuidado das mães com seus bebês deveriam ser contabilizados para fins de remição, minimizando o impacto e o tempo de cárcere em suas vidas.

Lunetas –Quais são os caminhos possíveis para uma mudança de cenário em relação a esta questão?

Surrailly Youssef – Nesse contexto de total violação dos direitos das mulheres e de invisibilização das especificidades de gênero, entendemos que o melhor caminho para mudança desse cenário é o desencarceramento.

As próprias Regras de Bangkok, documento das Nações Unidas que estimula a aplicação de alternativas ao cárcere para mulheres, atestam que a prisão para mulheres é aquela que não existe. Essa, sem dúvida, é a única maneira de se evitar que violações a direitos se perpetuem. Como uma alternativa subsidiária, que apenas amenizaria a violência de gênero estruturante do cárcere, sugerimos uma melhor e maior aplicação das alternativas ao cárcere para mulheres, de forma que elas tenham poder efetivamente desencarcerador.

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