A Esclerose Múltipla é uma doença autoimune. Em MS, pacientes e especialistas ressaltam importância do tratamento que é ofertado pelo SUS
Doença neurológica, crônica e autoimune, a Esclerose Múltipla acomete ao menos 300 pacientes em Mato Grosso do Sul que tiveram os seus sistemas cerebrais afetados. Muita coisa mudou ao longo do tempo em relação aos diagnósticos, tratamentos e estigmas que envolvem a situação. Porém, o Estado hoje se encontra num cenário em que a doença registra baixos índices de óbitos, provando que, quando se trata da Esclerose Múltipla, o tratamento é fundamental para ter qualidade de vida.
A Esclerose Múltipla pertence ao grupo de doenças autoimunes em que ocorre uma ativação anormal das células de defesa com a produção de autoanticorpos – dirigidos para células e tecidos do próprio corpo – que produzem uma inflamação em estruturas do Sistema Nervoso Central. Assim, o alvo principal é a camada de mielina que fica destruída ou lesionada.
Segundo o neurologista Omar Gurrola Arambula, que tem especialidade em neuroimunologia e Esclerose Múltipla, a doença se apresenta em surtos, que são episódios de aparecimento de novos sintomas de deficit neurológico com mais de 24 horas.
“A evolução mais comum é o fenótipo chamado Esclerose Múltipla Rimetente Recorrente [85% dos casos], onde o paciente, após apresentar vários surtos, continua sem acumulação significativa de novos deficits neurológicos, podendo voltar à linha de base. Existem mais dois tipos de fenótipos conhecidos como Esclerose Múltipla Secundariamente Progressiva e Primariamente Progressiva, em que o paciente começa acumular sequelas significativas sem retornar à linha de base”, explica.
Vale ressaltar que existem várias possíveis causas da doença, sem necessariamente uma específica, como fatores de risco associados. São eles:
- Mais de 200 genes, histórico familiar de Esclerose Múltipla;
- Pessoas de raça branca com famílias de origem norte-americana ou europeia;
- Baixa exposição solar e, consequentemente, nível de vitamina D baixo por tempo prolongado;
- Infecções virais como Epstein-Barr e Varicela-Zoster;
- Consumo excessivo de sal e tabagismo ativo ou passivo;
- Obesidade na adolescência;
- Entre outros fatores, como tipo de microbiota intestinal.
Porém, o especialista alerta que nem todos os pacientes com Esclerose Múltipla têm esses fatores de risco ao mesmo tempo em que nem todos eles desenvolvem a doença. Por isso é importante ficar atento aos sinais que o corpo manifesta e sempre preservar pelo diagnóstico precoce.
Esclerose Múltipla afeta o Sistema Nervoso Central (Reprodução)
Sintomas e tratamentos da Esclerose Múltipla
Conforme Omar, os sintomas são variáveis e dependem da localização das áreas inflamadas no cérebro.
“A Esclerose Múltipla é geralmente chamada de “doenças das mil caras” devido à diversidade de apresentação clínica. Os sintomas mais comuns são sintomas sensoriais, como formigamento, perda sensitiva, alteração da acuidade visual, sintomas motores, geralmente se apresentam como fraqueza de um ou mais membros, visão dupla, além de coordenação prejudicada que afeta o equilíbrio, com quedas frequentes”.
O paciente também pode apresentar dificuldades para controlar a bexiga ou esfíncter retal, entre outros sintomas como disfunção erétil, tremores, dor, depressão, alterações cognitivas, fadiga e rigidez muscular. Nesse cenário, o tratamento é fundamental para reverter os sintomas e promover a qualidade de vida ao paciente. Assim, as abordagens se sustentam em cinco pilares:
1. Tratamento Surto: utiliza medicamento que melhora a inflamação produzida pela doença. As opções são pulsoterapia oral ou intravenosa (com corticóide em altas doses) ou até mesmo plasmaferese em casos refratários e agressivos;
2. Terapia modificadora da doença: esse é o verdadeiro tratamento para a doença, chamado de terapia modificadora. É usada em dependência da agressividade e atividade da doença assim como fatores de mau prognóstico;
3. Tratamento sintomático: a Esclerose Múltipla não se limita apenas a evitar novas ocorrências, mas também deve ser tratadas as complicações que ocorrem, podendo ser muito variadas. “Existem tratamentos para controlar as contrações musculares chamados espasticidade, distúrbios de memória, distúrbios de sensibilidade, fadiga, tremores, tonturas, dores, depressão, ansiedade, dor de cabeça, distúrbios do sono, problemas urinários e de sexualidade, entre muitos outros”, afirma Omar.
4. Reabilitação: um plano terapêutico e de reabilitação para todos os pacientes com Esclerose Múltipla é muito importante, seja em estágios iniciais ou avançados porque ela pode ajudar a fortalecer os músculos, melhorar o equilíbrio ou problemas de marcha, a atenção, concentração ou memória, reduzir duas contraturas e desenvolver habilidades para compensar deficiências.
5. Autocuidado: outra parte fundamental é cuidar de nós mesmos, como fazer exercícios, parar de fumar, ter uma alimentação saudável rica em frutas e vegetais e ter hobbies. “Olhar pelo bem-estar e lembramos de pedir ajuda quando precisarmos”, explica o neurologista.
Diagnosticada há 23 anos, Cleide sabe bem como é a realidade da Esclerose Múltipla e afirma ter vivido um processo de autoaceitação. Para ela, a disciplina do seu tratamento foi fundamental para ter qualidade de vida.
Limitações fazem parte da rotina
Cleide Soares Fagundes Vaccari é autônoma e completou 55 anos recentemente. O diagnóstico dela ocorreu há 23 anos, quatro meses após o fim da sua gestação. Na época, o diagnóstico para a doença não era tão fácil quanto hoje, então ela ficou um ano fazendo exames até conseguir ter um resultado assertivo. No entanto, o motivo do seu organismo ter desenvolvido a Esclerose Múltipla ainda é uma incógnita.
Ela recorda que procurou um médico depois do primeiro surto, quando teve o seu corpo adormecido. Ao longo dos anos, Cleide teve três lesões no cérebro, mas que hoje se encontram estacionadas desde 2017, quando teve o último surto, graças ao tratamento facilitado.
Até pouco tempo atrás ela tomava injeção três vezes por semana. Depois da sua evolução, Cleide agora só toma um medicamento de comprimido via oral por dia para manter a condição controlada. Ela afirma que são medicamentos de alto custo, podendo variar de R$ 8 mil a R$ 14 mil o preço médio. Felizmente, todos eles são ofertados pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e a autônoma nunca precisou pagar nada para o tratamento. Hoje, afirma ter uma vida normal com apenas algumas limitações.
“Eu não esqueço que tenho Esclerose Múltipla, tomo medicamento até hoje, tem coisas que não consigo fazer normal igual todo mundo, mas eu procuro não ficar pensando que tenho uma doença. Eu penso que tenho um problema de saúde que está aqui, estou tratando e que, se Deus quiser, vou longe ainda com ele”.
Cleide ainda afirma que muita gente tem estigmas envolvendo a doença, mas afirma que seguir o tratamento adequado e ter uma rede de apoio são fundamentais para a esclerose ser apenas mais uma condição de saúde.
“O importante da Esclerose Múltipla, e qualquer doença autoimune, é o apoio da família. Se você não tem você cai. Não se desespere, tem tratamento, siga o tratamento de forma correta porque é necessário”, diz ela.
“Vivo uma vida totalmente normal”
Já a estudante Júlia Barbosa Brunharo, de 21 anos, teve o diagnóstico para Esclerose Múltipla mais recentemente, aos 18 anos de idade. Os primeiros sintomas começaram quando ela fazia aulas práticas da autoescola, quando começou a sentir dor no fundo do olho direito. Na época, por ser uma dor sutil, ela acreditava ser pelo ar-condicionado do carro.
A situação não melhorou, então ela decidiu procurar ajuda. Passou por tratamento de sinusite e chegou a passar pelo oftalmologista. A dor piorava gradativamente até que, no dia seguinte ao exame de olho, começou a perder a visão.
Na época a jovem morava em Guia Lopes da Laguna e foi transferida com urgência para Campo Grande. Ela passou por um outro oftalmologista, fez novos exames e foi constatada a perda de 90% da visão.
“Me encaminharam para uma ressonância magnética antes que eu procurasse um neurologista, porque de acordo com eles [médicos], o neurologista iria pedir a ressonância mesmo, então quiseram fazer tudo da forma mais rápida possível. Fiz a ressonância no mesmo dia e fui no neurologista no Hospital El Kadri que já me encaminhou para a pulsoterapia no hospital da Cassems, onde fiquei por 5 dias e já sai enxergando quase 100%”, recorda.
Júlia faz tratamento com medicamento oral diário e imunossupressor, chamado Cloridrato de Fingolimode. O medicamento é de alto custo, mas também ofertado pelo SUS. Ela explica que recebe os medicamentos da Farmácia Escola da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), com facilidade. Hoje, ela celebra o quanto o acesso facilitado ao tratamento mudou sua vida.
“Felizmente não tenho sequela nenhuma, vivo uma vida totalmente normal, só com um pouco mais de cuidado e exames frequentes, mas sem nenhuma limitação”, explica.
Foi nesse processo de entender a sua condição que Júlia se deparou com a ASMEM (Associação Sul-mato-Grossense de Esclerose Múltipla), onde ela troca experiências com outros pacientes, recebe orientações e se sente acolhida no processo de aceitação.
Pacientes não estão sozinhos nesta “batalha”
O grupo foi criado para que os pacientes diagnosticados com a doença pudessem conversar entre si, trocar informações, dicas, apoio, esclarecimentos quanto aos sintomas, medicamentos, etc. Hoje, a ASMEM conta com a presença profissionais da saúde, como fisioterapeutas, médico neurologista, farmacêuticos que completam uma rede de apoio.
“Muitos pacientes desabafam e buscam palavras de coragem diante da nova realidade com a qual precisam se adaptar e aprender a viver, seja no diagnóstico, seja na mudança de rotina diária que a doença exige. Também no grupo conseguimos compartilhar fármacos que “sobram” quando da troca de medicação com pacientes que por algum motivo estejam sem acesso ao remédio”, diz Joyce.
A aposentada explica a necessidade da troca de informações entre os pacientes com Esclerose Múltipla por ser uma doença de muitas faces e fases. Enquanto uns conseguem viver a vida sem ou quase nenhuma limitação, outros têm suas rotinas completamente alteradas.
“A escuta e o apoio de quem convive com a doença e já viveu as crises dos surtos colabora para o restabelecimento da Fé, Esperança e Força para superar o desafio diário desta enfermidade crônica. Afinal, cada dia vivido sem surto ou queda é uma conquista. Também partilhar as conquistas e superações é maravilhoso e dá ainda mais razões para agradecer”, complementa.
Nesse cenário, a ASMEM objetiva ampliar a rede de apoio aos pacientes de Esclerose Múltipla e seus familiares em Mato Grosso do Sul e a divulgação nas escolas, universidades e junto aos profissionais de saúde, principalmente os de primeiro contato dos pacientes acerca dos sintomas e tratamentos disponibilizados pelo SUS.
MS tem 10 diagnósticos de Esclerose Múltipla a cada 100 mil habitantes
Conforme o último Censo do IBGE, Mato Grosso do Sul tem 2.756.700 de habitantes. Assim, entre 10 e 13 pessoas são diagnosticadas com Esclerose Múltipla a cada 100 mil habitantes no Estado, alega o neurologista Pedro Rippel Salgado. Ele atua no Hospital Universitário de Mato Grosso do Sul, unidade referência para o atendimento de pacientes com Esclerose Múltipla em MS.
Rippel explica que o ambulatório presente no Hospital Universitário de Campo Grande foi implementado no ano de 2000 com referência para diagnóstico e tratamento de doenças desmielinizantes – doenças autoimunes que afetam determinada estrutura dos neurônios – e as principais são Esclerose Múltipla e Neuromielite Óptica.
Hoje o ambulatório atende cerca de 350 pacientes de todo o Mato Grosso do Sul, sendo 300 com Esclerose Múltipla, entre 35 e 40 com Neuromielite Óptica e entre 5 a 10 com Síndrome anti-MOG.
Dessa forma, o tratamento depende de vários fatores, como o perfil do paciente e agressividade da doença. Os medicamentos variam e também têm alto custo no mercado devido a sua eficácia. Porém, a boa notícia é que todos os receitados pelo hospital são oferecidos pelo SUS, assim como as consultas e tratamentos no geral. Caso algum paciente precise de um medicamento específico que não seja ofertado na saúde pública, ele consegue por meio da Defensoria Pública, explica o médico.
As pacientes entrevistadas pela reportagem, por exemplo, fazem todo o tratamento via SUS e celebram a facilidade de acesso às consultas e medicamentos. Assim, especialistas afirmam que os pacientes com tratamento adequado conseguem ter qualidade de vida, o que resulta em baixo índice de óbitos no Estado.
“Existe estigma em relação a doença por conta principalmente de problemas de locomoção que é o que mais aflige os pacientes. Os pacientes atendidos no nosso serviço têm uma gama muito grande de evolução, desde cadeira de rodas até pacientes que ficam assintomáticos. Hoje o paciente com Esclerose Múltipla tem um futuro bem melhor”, comemora o neurologista.
Óbitos por Esclerose Múltipla
Conforme explica o neurologista, uma morte por Esclerose Múltipla é bem difícil de acontecer e, normalmente, o óbito ocorre pelas complicações ou comorbidades. Ficar sem tratamento também é um risco porque faz a doença evoluir mais rápido.
O baixo índice também é apontado pela Sesau (Secretaria Municipal de Saúde). Não é possível estimar quantas pessoas vivem hoje com a doença na Capital. Neste ano, até o momento, foi registrado um óbito em que a causa base foi a Esclerose Múltipla, no ano anterior, foram dois registros.
“Isso não significa que apenas esse quantitativo de pacientes diagnosticados vieram a óbito, e sim que esse é o número de pessoas que evoluíram ao óbito única e exclusivamente em decorrência do agravo”, informa a secretaria.
Como buscar ajuda na saúde pública
A Sesau informa que o paciente com suspeita da doença deve buscar uma unidade básica de saúde para solicitar o encaminhamento a um neurologista. Após realização dos exames avaliados necessários pelo profissional para a realização do diagnóstico, o paciente pode iniciar o tratamento, que é tanto medicamentoso quanto de reabilitação, quando necessário.
“Por ser um tratamento individualizado, ou seja, cada paciente tem o tratamento prescrito de acordo com a necessidade individual, este pode ser realizado tanto na rede de atenção especializada ou serviços contratualizados pelo município, quanto na rede própria. Quanto aos medicamentos, todos, com exceção dos corticóides, são fornecidos pela Casa da Saúde”, explica.
Dia Nacional da Esclerose Múltipla
Como você viu até aqui, a Esclerose Múltipla é uma doença que não tem cura e pode se manifestar em diversos sintomas, como fraqueza, desequilíbrio, tontura, fadiga, problemas de visão, dores nos olhos, etc.
Embora sua causa ainda seja desconhecida, ela tem sido foco de muitos estudos no mundo todo, sobretudo no Brasil, o que têm possibilitado uma constante evolução na qualidade de vida dos pacientes, que são geralmente jovens, em especial mulheres de 20 a 40 anos, informa o Ministério da Saúde.
É por isso que nesta quarta-feira, 30 de agosto, é celebrado o Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla (EM). Especialistas ressaltam ser uma data de extrema importância para os pacientes de EM e seus familiares, representando uma conquista fundamental na luta pela divulgação e pelo reconhecimento da doença no cenário nacional.
A data foi celebrada pela primeira vez em 2006, ao ser instituída pela Lei nº 11.303. A lei foi resultado do trabalho da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM) para que fosse oficializado um momento de visibilidade nacional para a Esclerose Múltipla, seus pacientes e os desafios do dia a dia.