Como pode a sociedade culpar a mulher pela violência que ela sofre?
Cristiane Castrillon da Fonseca Tirloni era minha seguidora. Mulher linda, sorriso brilhante, 48 anos, independente, forte, carreira construída com luta. Trabalhava com assistência social, ajudou muita gente, especialmente crianças em situação de vulnerabilidade.

Nos conhecemos num evento de empreendedorismo feminino, um curso para fortalecer mulheres. Conversávamos de vez em quando sobre a barra que é ser mulher, em um mundo que só tolera mulheres porque precisa delas.
Quando vi sua foto na reportagem como vítima de um feminicídio, a ânsia de vômito que me tomou foi incontrolável. O que se seguiu depois nos comentários nas redes sociais, foi ainda mais digno de ânsia: pessoas culpando Cristiane por ter sido morta por um homem que acabara de conhecer, relegando seu assassinato à uma imprudência dela, e não à maldade absoluta do assassino.
O machismo é uma doença tão arraigada, que a história de vida da Cristiane foi sublimada pela vontade das pessoas de constranger até mesmo sua memória, imputando a ela a absurda culpa por ter aceitado a companhia do homem que lhe tiraria a vida.
Você sabe por que o Supremo Tribunal Federal precisou, há poucos dias, tornar inconstitucional a tese de “legítima defesa da honra”? Porque homens que matam suas mulheres são julgados por pessoas comuns, em júris populares, e não por um juiz de toga. Essas pessoas, em pleno 2023, ainda achavam aceitável que um homem assassinasse a esposa se fosse, por exemplo, traído por ela, e votavam por absolvê-lo. É DESSA SOCIEDADE que estamos falando.
O perigo que me impede de correr na rua quando escurece, é o mesmo de eu marcar um encontro pelo Tinder. Onde está o erro? Em mim, que tenho o direito de viver minha vida, ou no homem, que pensa ter o direito de me violentar em qualquer uma das situações?
Meu instagram é uma comunidade fechada. Ali nos apoiamos, no desafio diário de suportar viver em uma sociedade incapaz de proteger mulheres e meninas. Cristiane sempre participava das caixinhas, comentava, brincava, deixava sua alegria pelo caminho. Me dói como se eu tivesse perdido uma amiga.

Qualquer mulher tem o direito de ir a um bar depois de um sábado feliz, conhecer um homem e decidir passar a noite com ele. Homens fazem isso o tempo todo, e jamais são julgados. Quantas vezes você ouviu falar que uma mulher assassinou um homem após passar a noite com ele? Pois bem. Cristiane não foi a primeira. Eis a resposta.
Mesmo quem luta por um lugar mais digno para as meninas no futuro, se expõe à violência dos homens simplesmente por incomodá-los. Todos os dias quando respondo comentários machistas no tiktok, deixo um rastro de identificação do cara com uma amiga policial. Cada nome, de cada hater, tudo catalogado. Você acha difícil algum deles tentar me matar? Não, não é. Assim como não é difícil você conhecer um homem num bar e acabar assassinada por ele.
A raiz de tudo isso é o machismo.
É o homem que tem certeza da impunidade ao violentar, tem certeza do seu direito de dispor da vida da mulher, conforme sua vontade. Do comentário ofensivo ao feminicídio, a distância é pouca. O ódio é o mesmo.
Nós não deixaremos que a memória dela seja maculada pelo julgamento burro de uma gente machista por opção. Para cada comentário ofensivo, haverá uma mana para rebater. Para cada gota de chorume destilado nas redes sociais, para cada dose de mesquinhez de quem não quer se incomodar com esse elefante na sala que é o machismo cotidiano, haverá uma mulher para gritar. Para cada macho metido a conservador que cataloga mulheres pela sua liberdade amorosa e sexual, haverá uma feminista para responder e expor. Para cada machista que essa sociedade formar, 10 mulheres se levantarão aos berros.
Que um dia, a resposta dessa luta seja uma mulher, efetivamente, ter o direito de ser livre sem medo de morrer.
Por:Jaqueline Naujorks