Em mais de 700 municípios, o programa levou atendimento médico regular pela primeira vez
Responsável por levar atendimento básico de saúde a mais de 63 milhões de brasileiros — muitos em municípios onde nunca havia atuado um médico —, o programa Mais Médicos se tornou alvo de uma ofensiva ideológica do trumpismo, instigado pela extrema direita bolsonarista. O programa chegou a mais de 4 mil municípios, incluindo 1,1 mil cidades onde a cobertura era inexistente antes de 2013, e garantiu presença constante de profissionais em todos os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Ao condenar o programa por motivações ideológicas, a ofensiva atinge não apenas um projeto de saúde pública, mas o próprio direito constitucional de milhões de brasileiros ao atendimento médico.
Após o governo dos Estados Unidos revogar os vistos de integrantes do governo ligados ao Mais Médicos, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, defendeu o programa.
Segundo o ministro, o Mais Médicos “sobreviverá aos ataques injustificáveis de quem quer que seja”, assim como o Pix, sistema de pagamento brasileiro que também já foi alvo de críticas do governo de Donald Trump.
“O programa salva vidas e é aprovado por quem mais importa: a população brasileira. Não nos curvaremos a quem persegue as vacinas, os pesquisadores, a ciência e, agora, duas das pessoas fundamentais para o Mais Médicos na minha primeira gestão como Ministro da Saúde, Mozart Sales e Alberto Kleiman”, disse em postagem nas redes sociais.
Mais cedo, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, anunciou a revogação dos vistos de funcionários do governo brasileiro, ex-funcionários da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e seus familiares.
De acordo com comunicado, foram revogados os vistos de Mozart Julio Tabosa Sales, secretário de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde, e Alberto Kleiman, ex-assessor de Relações Internacionais do ministério e atual coordenador-geral para COP30.
A justificativa do governo de Donald Trump foram que eles desempenharam um papel na implementação do programa enquanto trabalhavam no Ministério da Saúde do Brasil e que são cúmplices “com o trabalho forçado do governo cubano” por meio do programa.
Nas redes sociais, Padilha afirmou ainda que, nos últimos dois anos, o número de profissionais no programa dobrou.
“Temos muito orgulho de todo esse legado que leva atendimento médico para milhões de brasileiros que antes não tinham acesso à saúde. Seguiremos firmes em nossas posições: saúde e soberania não se negociam. Sempre estaremos do lado do povo brasileiro”, acrescentou.
Criado em 2013, o Programa Mais Médicos atende regiões remotas, de difícil acesso, vulneráveis e com escassez desses profissionais. Na época, foram contratados médicos cubanos por meio de cooperação com a Opas, até 2018. Em 2023, o governo federal retomou o programa, rebatizado de Mais Médicos para o Brasil, com prioridade para profissionais brasileiros e abertura de vagas para outras áreas de saúde, como dentistas, enfermeiros e assistentes sociais.
O que houve?
O governo dos Estados Unidos revogou vistos de integrantes e ex-integrantes dos governos do PT, numa iniciativa que amplia o alcance das sanções unilaterais contra autoridades brasileiras e inaugura uma nova fase de pressão política internacional. A medida atinge diretamente nomes ligados ao programa Mais Médicos — criado durante o governo Dilma Rousseff (2011–2016) — e é interpretada como uma sinalização do governo americano de que punições não se limitarão ao Judiciário ou a ações recentes.
A decisão foi anunciada por Rubio, figura de destaque na extrema direita norte-americana, e ocorre em meio a uma ofensiva diplomática articulada por Eduardo Bolsonaro (PL-SP) junto à equipe do ex-presidente Donald Trump. A revogação dos vistos tem como objetivo demonstrar que atos políticos do passado também estão sob escrutínio — e que questões “ideológicas” antigas, como a aproximação com Cuba por meio do Mais Médicos, continuam influenciando decisões na política externa dos EUA.
Entre os nomes citados no comunicado oficial constam servidores e ex-gestores do programa, embora o ministro Alexandre Padilha, que ocupava a pasta da Saúde na época da criação do Mais Médicos, não tenha sido incluído na lista dos atingidos pelas sanções.
Acordo político e “acerto de contas”
Fontes diplomáticas afirmam que a medida faz parte de um “acerto de contas” simbólico, uma resposta ideológica do governo Trumpista aos vínculos do PT com regimes como o cubano e o venezuelano. Nesse contexto, o Mais Médicos, que trouxe milhares de profissionais cubanos ao Brasil entre 2013 e 2018, ressurge como um elemento de tensão geopolítica.
A decisão de revogação já estava tomada antes mesmo das reuniões marcadas por Eduardo Bolsonaro com autoridades norte-americanas. O parlamentar tem atuado como elo entre setores da extrema direita brasileira e figuras influentes no Partido Republicano dos EUA, buscando pressionar os Poderes no Brasil — Executivo, Judiciário e Legislativo — para frear as investigações e processos contra seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, especialmente no caso que envolve a tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
Pressão internacional e uso político das sanções
A medida se insere em uma estratégia mais ampla: há menos de um mês, em 18 de julho, o governo dos EUA revogou os vistos de oito ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). A articulação, como revelou a coluna, começou ainda em janeiro e culminou com a inclusão do ministro Alexandre de Moraes na lista de sanções previstas pela Lei Magnitsky — legislação que permite ao governo norte-americano punir estrangeiros envolvidos em graves violações de direitos humanos ou corrupção.
A pressão contra o STF continua sendo um dos principais focos da ofensiva internacional conduzida por Eduardo Bolsonaro. Nos bastidores, ele defende inclusive a ampliação das sanções para familiares dos ministros e o congelamento de bens em solo americano. Como noticiado em março, bens de magistrados brasileiros já foram mapeados como parte dessa estratégia.
Trumpismo exportado e riscos à soberania
A nova fase da ofensiva acende o alerta no Itamaraty e em setores do Congresso. Embora o governo Lula ainda não tenha emitido resposta oficial à medida, fontes diplomáticas ouvidas sob condição de anonimato avaliam que a ação dos EUA representa uma interferência política com forte motivação ideológica, reforçada pela aliança entre o bolsonarismo e a direita trumpista.
Para analistas de relações internacionais, o uso das sanções como instrumento de pressão interna em outro país representa uma distorção do espírito original da Lei Magnitsky. “É um precedente perigoso. Ao invés de combater violações de direitos humanos, a ferramenta vira arma de disputa política”, avalia o professor Oliver Stuenkel, da FGV, em entrevista à DW Brasil.
A expectativa, agora, é que o Planalto busque interlocução com o Departamento de Estado e com a Casa Branca para frear o avanço de novas sanções e proteger autoridades brasileiras de ingerências externas.
Enquanto isso, a estratégia de Eduardo Bolsonaro segue em curso. Sem conseguir reverter o avanço do processo contra seu pai no STF, o deputado intensifica a pressão internacional, transformando o campo diplomático em arena de disputa jurídica e ideológica — com consequências ainda incertas para a soberania e a estabilidade institucional do Brasil.
O Programa
O Mais Médicos foi criado pelo governo federal da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em julho de 2013 para ampliar a presença de médicos na rede pública, com foco em áreas carentes, regiões do interior e periferias das grandes cidades, onde havia escassez de profissionais.
A proposta incluía a vinda de médicos estrangeiros sem a exigência de revalidação do diploma e a possibilidade de brasileiros formados no exterior atuarem no país.
A prioridade era para profissionais brasileiros, mas com a recusa destes profissionais em integrar o programa, médicos estrangeiros preencheram as vagas remanescentes.
Os médicos recebiam bolsa federal e atuavam principalmente na Atenção Primária à Saúde, responsável por resolver cerca de 80% dos problemas de saúde.
Além da assistência, o programa previa qualificação profissional durante o trabalho.
A iniciativa alcançou áreas de difícil acesso e alta vulnerabilidade social, incluindo distritos indígenas, e chegou a mais de 4 mil municípios, beneficiando mais de 63 milhões de pessoas.
Estudos também apontaram melhorias no atendimento, com vínculos mais próximos entre médicos e comunidades.
Como foi a participação dos cubanos?
Como os editais do programa não conseguiam preencher todas as vagas com brasileiros, o governo firmou uma parceria com a Opas. A partir de agosto de 2013, médicos cubanos começaram a chegar ao Brasil para ocupar esses postos, especialmente em áreas de maior vulnerabilidade social, como comunidades do semiárido nordestino e aldeias na Amazônia.
O modelo de remuneração gerou controvérsia desde o início. O Brasil pagava cerca de R$ 10 mil por médico ao governo cubano, mas os profissionais recebiam apenas uma parte desse valor, já que a maior fatia ficava com o Estado cubano. Esse repasse alimentou críticas de entidades médicas brasileiras e também de setores políticos que viam o arranjo como injusto.
Entre 2013 e 2018, cerca de 20 mil médicos cubanos passaram pelo programa, com pico de 11,4 mil profissionais em atividade ao mesmo tempo, mais de 60% de todo o contingente do Mais Médicos.
No período final, antes da saída, eram aproximadamente 8,3 mil cubanos atuando em 2,8 mil municípios.
Os médicos estavam distribuídos por todo o país, alcançando mais de 4 mil municípios e todos os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
Em mais de 700 cidades, o atendimento médico regular foi oferecido pela primeira vez.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2016 o programa era responsável por 48% das equipes de Atenção Básica em municípios com até 10 mil habitantes e garantia 100% da cobertura em 1,1 mil cidades.
Os profissionais cubanos eram especialistas em Medicina Geral Integral, com experiência mínima de 10 anos, passagem por outros países e especialidade em Medicina de Família e Comunidade.
Antes de iniciar o trabalho, participavam de um módulo de acolhimento de três semanas sobre o SUS, protocolos de atenção básica e língua portuguesa.
A chegada dos médicos cubanos ao Brasil, porém, enfrentou episódios de hostilidade. Um dos casos mais emblemáticos ocorreu em agosto de 2013, em Fortaleza (CE), quando um grupo de manifestantes ligados ao Sindicato dos Médicos do Ceará vaiou e insultou profissionais cubanos durante a aula inaugural do treinamento do progama.
O então ministro da Saúde, Alexandre Padilha, classificou a atitude como “truculenta” e “xenófoba”, afirmando que houve incitação ao preconceito contra médicos que vieram de outros países para atender a população.
A participação deles foi encerrada em novembro de 2018, quando o governo de Cuba decidiu deixar o programa após declarações do então presidente eleito Jair Bolsonaro exigindo o Revalida e mudanças contratuais.
E o Médicos pelo Brasil?
O Médicos pelo Brasil lançado em 2019, durante o governo Jair Bolsonaro, com a proposta de substituir gradualmente o Mais Médicos, priorizando localidades de difícil acesso e alta vulnerabilidade.
O programa exige registro ativo no Conselho Regional de Medicina (CRM) brasileiro e adota um modelo de ingresso por meio de processo seletivo estruturado, com etapas classificatórias e eliminatórias realizadas pela Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps).
Os profissionais aprovados ingressam como bolsistas e recebem, nos dois primeiros anos, uma bolsa-formação de R$ 15 mil mensais, período em que realizam a especialização obrigatória em Medicina de Família e Comunidade (MFC).
Ao concluir a formação e serem aprovados na avaliação final, passam a ser contratados no regime celetista pela Adaps, com plano de carreira estruturado e possibilidade de progressão salarial.
Em janeiro de 2025, o Médicos pelo Brasil contabilizava 4.073 médicos bolsistas e 442 tutores atuando na formação em MFC.
A cobertura do programa vem sendo ampliada, com projeção de presença em 5.233 municípios até o fim do ano, segundo dados do Ministério da Saúde.
Como funcionam hoje os programas?
Desde 2023, tanto o Mais Médicos como o Médicos pelo Brasil operam de forma paralela na rede de Atenção Primária à Saúde, com perfis, regras e formatos de contratação distintos, mas objetivos complementares de ampliar a cobertura médica no país.
O Mais Médicos, retomado no governo Lula, atua em mais de 4 mil municípios e inclui 108 vagas específicas para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs).
De acordo com o painel de acompanhamento do programa, atualmente, 26,4 mil profissionais estão em atividade no país, dos quais cerca de 2,6 mil são cubanos. A presença deles, que hoje representa pouco mais de 10% do total, já chegou a ultrapassar 60% das vagas na década passada.
O programa aceita médicos brasileiros com registro no CRM ou diploma revalidado no Brasil, brasileiros formados no exterior e médicos estrangeiros habilitados no exterior. Médicos sem revalidação de diploma têm permissão para trabalhar apenas em unidades básicas de saúde da rede pública e em municípios previamente indicados.
Somados, o Mais Médicos e o Médicos pelo Brasil reúnem 26.468 médicos em atuação, cobrindo 81,6% dos municípios brasileiros.