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Quando o “Cuidado” Controla: O Paternalismo Opressor e o Silêncio da Violência

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Projeto Nova Transforma – Maio Laranja 2025

“Infância não se devolve. E o que deveria ser proteção jamais pode servir de justificativa para o controle, o medo e o abuso.”

Maio Laranja é um chamado coletivo para romper o silêncio e proteger nossas crianças da violência sexual. Mas é preciso ir além da denúncia: precisamos questionar as estruturas que perpetuam o abuso — especialmente quando ele acontece dentro da própria casa, vindo de quem deveria cuidar.

O conceito de paternalismo opressor nos ajuda a entender como o “cuidado” pode se tornar um instrumento de dominação e silenciamento, principalmente em ambientes familiares marcados por autoritarismo e falta de afeto saudável. É uma distorção do papel de proteção, quando o adulto usa sua autoridade para controlar o corpo e a mente da criança, mascarando a violência com discursos como: “é para o seu bem”, “isso não vai doer”, ou “você precisa obedecer”.

É o que vivenciou Débora (nome fictício), uma jovem atendida pelo Projeto Nova Transforma. Ela sofreu abuso sexual do próprio pai desde a primeira infância. Suas irmãs também foram vítimas. Mesmo com denúncias e prisões, o ciclo de violência se repetia. O retorno do agressor ao lar significava mais medo, mais silêncio, mais dor.

“Sinto que as pessoas não gostam de mim, me sinto julgada. Me isolo, mas tenho conseguido identificar as fragilidades. Estou começando a aceitar o fato de ter sido machucada. Ainda hoje lembro do meu pai falando: ‘não vai doer’. Mas entendo agora a diferença entre auto-comiseração e autoaceitação.”

O abuso intrafamiliar deixa marcas profundas e duradouras. Débora convive hoje com depressão, isolamento social, baixa autoestima e dificuldade de inserção no trabalho e na vida em comunidade. O que ela viveu, infelizmente, ainda é uma realidade para milhares de crianças brasileiras.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023), mais de 61% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes acontecem no ambiente doméstico, e os agressores, na maioria das vezes, são pais, padrastos, avôs ou irmãos. Esses dados se somam ao alerta do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que aponta que o abuso sexual infantil costuma acontecer de forma contínua e silenciada ao longo de anos.

A psicologia do desenvolvimento humano tem se debruçado sobre os impactos desse tipo de violência. Autores como Alice Miller e Bessel van der Kolk demonstram que o trauma precoce causado por abusos de figuras cuidadoras pode gerar alterações duradouras no cérebro da criança, afetando áreas ligadas à memória, ao comportamento social e ao controle emocional. Crianças abusadas por quem deveria protegê-las enfrentam maior risco de desenvolver transtornos depressivos, ansiedade crônica, distúrbios de identidade, autolesão e dificuldades de vínculo ao longo da vida.

Eliane (nome fictício), também acolhida pelo Nova Transforma, traz outro retrato dessa realidade:

“Na verdade, os abusos começaram com os meus avós. Eles tinham uma mania de passar a mão no meu corpo e me cheirar… sempre falavam: ‘vem cá, dá cheirinho para o vovô’. Na época, eu não sabia que aquilo era abuso, mas sentia que algo estava errado.”

Esses relatos nos mostram como o abuso nem sempre se dá com violência física explícita. Muitas vezes, ele se instala em gestos normalizados, permeados de “carinho” forçado e manipulação emocional. E isso agrava o trauma, pois a vítima demora a reconhecer o que sofreu.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 5º, afirma que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, devendo ser protegidos por todos os meios possíveis. Porém, ainda hoje, muitas vítimas são desacreditadas quando denunciam. Outras são silenciadas pelas próprias famílias.

É por isso que campanhas como o Maio Laranja são tão necessárias. Não basta ouvir. É preciso acreditar, acolher e agir.

No Projeto Nova Transforma, acompanhamos histórias de dor, mas também de superação. Histórias que desafiam o mito da família perfeita e nos chamam à responsabilidade coletiva de construir espaços verdadeiramente seguros para crescer.

A violência sexual infantil não pode mais se esconder atrás de “carinhos” forçados, de promessas de segredo, ou da autoridade inquestionável dos adultos. Cuidar é proteger, e não controlar.

Neste Maio Laranja, que cada gesto nosso seja uma resposta clara: nenhuma criança deve ser silenciada pela culpa, pelo medo ou pela obediência cega.

Viviane Vaz
Psicanalista, Escritora e
Coordenadora do Projeto Nova Transforma
📧 vivi.vaz@hotmail.com
📱 @vivismvaz

https://vivisvaz.blogspot.com/

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