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‘Minhas dívidas chegaram a R$ 240 mil’: mulheres acendem alerta para oniomania, a compulsão por compras

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A oniomania, transtorno marcado pela compulsão por compras, afeta o emocional e finanças. A Marie Claire, especialistas falam sobre como a busca por alívio emocional transforma o ato de comprar em um ciclo de culpa e repetição: ‘Não é sobre gostar de comprar, mas sim sobre usar o ato como uma tentativa de aliviar emoções difíceis’

 

Uma caneca nova, uma peça de roupa, um acessório em promoção, mais um caderno que não será usado: o impulso que começou em compras aparentemente inofensivas se transformou em uma angústia para Camila Nunes, de 40 anos. Ela convive grande parte de sua vida com a oniomania, ou seja, a compulsão por compras. “Antes de comprar, é como se meu cérebro me desse uma missão. Enquanto eu não compro, minha cabeça não me deixa em paz”, conta.

Camila lida com a oniomania há grande parte de sua vida

A goiana começou a perceber o impacto do consumo descontrolado ainda na adolescência, mas foi apenas por volta dos 23 anos, quando já trabalhava como estagiária, que a situação se tornou insustentável. “Eu ganhava pouco e gastava tudo. Comecei a comprar fiado, a fazer dívidas em notinhas. Quando vi, já tinha pegado empréstimos para cobrir o que não conseguia pagar.”

“Não importa se a pessoa recebe R$1 mil ou R$ 30 mil, nunca é suficiente. Morava sozinha, pagava as contas, mas não tinha dinheiro pra comprar papel higiênico, água mineral. Tinha que pegar na casa da minha mãe.”

Ela relata que sua cabeça só pensava nas compras. “Eu tinha acabado de comprar uma coisa, e já estava completamente envolvida na próxima. Eu nunca usufruía daquilo. Comprava, chegava em casa, guardava. E muitas vezes até esquecia que tinha comprado aquilo, a ponto de comprar a mesma coisa várias vezes.”

Camila, que também tem transtorno obsessivo compulsivo (TOC), explica que antes do ato da compra vem uma “ideia muito atormentante”, como se tivesse uma pressão interna. “Durante a compra é terrível. Por exemplo, quando estou na fila do caixa, presencialmente, vem uma voz dizendo: ‘vai embora, isso vai continuar atrapalhando a sua vida’. Mas o impulso é tão forte que, até hoje, eu acabo cedendo.”

O próximo sentimento que chega é o de derrota. “Ele não dura muito, porque a vontade da próxima compra vem muito rápido. É como se entrasse nesse modo de repetição”, diz.

Camila faz conteúdos sobre oniomania nas redes sociais — Foto: Reprodução/ Instagram
Camila faz conteúdos sobre oniomania nas redes sociais — Foto: Reprodução/ Instagram

“Eu nunca consegui guardar R$ 10. Se eu tivesse esse valor, eu gastava ou até mais, porque geralmente gastava além. Entrei muito no cheque especial ao longo da vida toda. Desde que comecei a estagiar na adolescência, eu já estava endividada.”

 

Ela relembra o impacto da pandemia, quando perdeu o emprego e foi obrigada a encarar os números que evitava há anos. “Eu não tinha coragem de olhar o valor total. Só consegui com ajuda do tratamento psicológico. Foi aí que percebi que eu tinha muita coisa. Muita coisa mesmo.”

Mesmo depois de renegociar parte da dívida, Camila ainda lida com as consequências. “Consegui encarar o número e renegociar com o banco. E, pra pagar esse acordo, comecei a vender algumas coisas com mais frequência no meu brechó. Mas não consegui me livrar das dívidas, continuei comprando. Minha vida financeira está na UTI. Graças a Deus eu tenho essas coisas para vender, senão eu não sei o que seria de mim. Mas quero que, em algum momento, eu consiga vender para fazer uma poupança, comprar algo realmente importante.”

Ela criou um brechó para vender as coisas que comprou — Foto: Reprodução/ Instagram
Ela criou um brechó para vender as coisas que comprou — Foto: Reprodução/ Instagram

Ela conta que sempre foi muito organizada, o que acabava mascarando o problema. “Como eu conseguia guardar tudo direitinho, parecia que estava tudo sob controle. Mas era só uma falsa sensação.”

A goiana afirma que ter o transtorno de compras compulsivas no cenário atual é solitário. “A gente vive num mundo em que comprar é incentivado o tempo todo. E existe essa ideia de que é normal, de que ‘se deu vontade, é só passar o cartão’. Só que não é normal”.

Atualmente, Camila faz tratamento com psicólogo semanalmente e consulta com psiquiatra a cada três meses. Também toma medicação para o transtorno obsessivo compulsivo. “Meu desejo é que um dia eu fale sobre isso como alguém que superou, não como quem ainda está vivendo tudo.”

“Comprava para tentar suprir o que estava sentindo”

 

A jovem Dhara Cabrera, de 18 anos, também lida com a oniomania mesmo com sua pouca idade. Ela conta que tudo começou como uma forma de “preencher um vazio”. “Comprar virou uma forma de preencher esses buracos, mesmo que fosse só por alguns minutos. A sensação de escolher algo, de ter algo novo, me dava a impressão de que eu tinha algum tipo de controle sobre a minha vida. Mas não era real.”

A princípio, eram pequenos gastos aqui e ali. “Era só uma coisinha. Mas, de repente, virou hábito. Eu não comprava por precisar, comprava para tentar suprir o que estava sentindo. Com o tempo, isso foi se intensificando, principalmente quando comecei a associar as compras com momentos de estresse emocional. Aí virou uma espécie de fuga disfarçada de autocuidado.”

“O mais difícil é que essa vontade não está ligada à utilidade do que eu quero comprar. É uma vontade que surge do nada. Às vezes quando estou triste, às vezes quando estou feliz. Mas percebi que meu gatilho são emoções intensas. É como se meu cérebro tivesse aprendido que comprar é uma forma de lidar com qualquer coisa que eu esteja sentindo.”

 

A sensação antes da compra é descrita como um estado de ansiedade intensa. “É uma inquietação, uma agitação. Eu começo a procurar coisas sem saber exatamente o quê, esperando encontrar algo mágico que resolva tudo”. Durante a compra, vem o alívio. Mas o sentimento dura pouco. “Logo depois, vem culpa. Às vezes, eu nem abro as coisas que compro. Tenho roupas com etiquetas, pacotes fechados. Fico olhando para eles como se estivesse encarando meu erro materializado.”

A compulsão não afeta apenas o emocional. A jovem relata que já enfrentou sérios problemas financeiros aos 18 anos. “Quase negativei meu nome. Já fiquei sem limite no cartão, precisei adiar contas básicas, recusei convites por estar sem dinheiro, mesmo tendo feito compras recentemente.

Dhara afirma que o maior gasto feito em um único dia foi de R$ 3,5 mil e que muitas vezes “não consegue nem lembrar o que comprou”. “No dia seguinte, eu me perguntei: o que foi que eu fiz. São compras aleatórias, impulsivas. Depois olho a fatura e não sei onde gastei tudo aquilo.”

As consequências vão além da vida financeira. A oniomania começou a afetar também suas relações com a família e amigos. “A confiança é a primeira coisa que se perde. Eu começo a omitir, a esconder. Sinto vergonha, me afasto emocionalmente. É como se eu estivesse decepcionando as pessoas, mesmo que elas nem saibam o que está acontecendo.”

O que é a oniomania?

De acordo com uma pesquisa de 2022 da Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 8% da população mundial sofria de oniomania.

“A principal característica é a perda de controle diante do impulso de comprar, mesmo sem necessidade real ou condições financeiras. A pessoa sente uma urgência, uma tensão interna que só alivia quando realiza a compra ainda que depois venha o arrependimento ou a culpa. Não é sobre gostar de comprar, mas sim sobre usar o ato como uma tentativa de aliviar emoções difíceis, como ansiedade, tristeza ou vazio”, explica Maria Fernanda Caliani, psiquiatra especializada em saúde mental e comportamento.

“As consequências vão muito além do financeiro. A pessoa pode se endividar, comprometer relacionamentos, ter a autoestima abalada e entrar num ciclo de culpa e vergonha. Muitas vezes, ela tenta esconder os comportamentos, o que aumenta o sofrimento psíquico. É comum também que a oniomania esteja associada a outros transtornos, como ansiedade, depressão ou transtorno bipolar.”

 

Quais são os principais sinais de alerta?

De acordo com a especialista, é importante ficar atento a alguns comportamentos, como:

  • Comprar para aliviar estresse, tristeza ou ansiedade.
  • Sentir prazer intenso ao adquirir algo, seguido por culpa ou arrependimento.
  • Acumular produtos sem uso ou totalmente desnecessários.
  • Dificuldade em controlar os impulsos de compra, mesmo ciente das consequências.
  • Endividamento ou problemas financeiros recorrentes.

 

Renata Abalém, advogada e Diretora Jurídica do Instituto de Defesa do Consumidor e do Contribuinte (IDC), levanta o ponto de que a compulsão pode levar a endividamento grave, comprometendo o sustento próprio e da família. “Casamentos e relações familiares sofrem forte abalo, sobretudo quando há ocultação de dívidas ou mentiras sobre a real situação financeira. A compulsão também pode comprometer o desempenho profissional, por desatenção, preocupações constantes e fuga da realidade.”

Por que isso acontece?

A psiquiatra explica que a resposta está em parte no nosso cérebro. Durante a compra, o organismo libera dopamina, um neurotransmissor associado à sensação de prazer. “Esse mecanismo de recompensa pode se tornar viciante. A pessoa volta a comprar para reviver aquela sensação boa e aliviar desconfortos emocionais”, comenta.

Mas a compulsão também está ligada a fatores emocionais e sociais. “Muitas pessoas usam as compras como uma tentativa de preencher vazios emocionais, compensar frustrações ou até mesmo seguir um padrão social que valoriza o consumo como sinônimo de sucesso. É como se o alívio imediato da compra anestesiasse algo mais profundo que está doendo.”

Existe tratamento?

Lidar com o transtorno de compra compulsiva é possível, e o primeiro passo é reconhecer o problema, recomenda Mariana. “Comprar é uma atividade cotidiana e, muitas vezes, prazerosa. Mas quando ela se torna uma válvula de escape constante e prejudica a vida da pessoa, é preciso buscar ajuda”.

“O tratamento geralmente envolve psicoterapia — especialmente abordagens como a terapia cognitivo-comportamental — e, em alguns casos, medicação, principalmente se houver outros transtornos associados. O processo terapêutico ajuda a identificar os gatilhos emocionais, desenvolver novas estratégias de enfrentamento e reconstruir uma relação mais saudável com o consumo e com a própria autoestima.”

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