logo-kanal

Coaches mirins: crianças compartilham discurso de marketing digital e ostentação nas redes; veja os riscos

Compartilhar

 

 

 

Especialistas avaliam os impactos negativos dessa adultização precoce em tempos de redes sociais, como os riscos à autoestima, à saúde mental e à visão de futuro do público infantil. Confira e veja dicas para proteger os pequenos na internet

 

 

“Se você soubesse o quão fácil é fazer 1K [mil reais] por dia não perderia tempo com jovem aprendiz”. Essa é uma das publicações feitas por um menino de 13 anos no TikTok para incentivar outras crianças e pré-adolescentes a ganharem dinheiro com o digital. A postagem, que viralizou rapidamente, não é exceção. Basta procurar na aba de busca da rede social por “coaches mirins”, que é possível encontrar diversos perfis incentivando e “ensinando” estratégias para faturar com marketing digital.

Em outra publicação, um adolescente de 16 anos incentiva que crianças não percam tempo indo à escola para aprender sobre “Segunda Guerra Mundial”. O jovem diz, ainda, que não vê sentido em ir para o colégio para “fazer trabalho de sistema solar”.

Menina usando as redes sociais no celular — Foto: Freepik
Menina usando as redes sociais no celular — Foto: Freepik

 

Embora seja permitido pela Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que crianças menores de 16 anos realizem trabalho artístico, especialistas ouvidos pela CRESCER enxergam como preocupante esse avanço dos influenciadores menores de idade. “Eles já reproduzem violações muito flagrantes. Boa parte está incentivando a evasão escolar, o que é totalmente ilegal. É uma armadilha e são poucos os que conseguem ter, de fato, dinheiro e sucesso”, diz Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. Ela destaca, ainda, os impactos negativos dessa adultização precoce, como os riscos à autoestima, à saúde mental e à visão de futuro dessas crianças.

A crescente exposição do público infantil nesse cenário reflete não só as mudanças no comportamento das gerações mais novas, mas também o aumento da mercantilização infantil em tempos de redes sociais.

Meritocracia distorcida

A ideia de que o esforço individual é o único responsável pelas conquistas pessoais, conceito central da meritocracia, tem ganhado espaço nas redes sociais, inclusive entre crianças e adolescentes. Muitos dos chamados “coaches mirins” distribuem a ideia de que “se eu consegui, você também consegue” ou de que começar nesse universo digital é fácil e pode trazer ganhos altos em pouco tempo. “As redes sociais ampliam uma narrativa individualista. Esses conteúdos ainda fazem um apelo comercial e provocam uma economia de atenção”, diz Mello.

No entanto, especialistas alertam para os riscos dessa mentalidade para o desenvolvimento emocional dos mais jovens, sobretudo quando combinada à busca incessante por validação digital. “A meritocracia é a crença de que as conquistas são alcançadas apenas pelo mérito individual, como esforço e talento. Mas ela ignora condições sociais, econômicas e familiares que influenciam as oportunidades”, explica Renata Yamasaki, psicóloga e especialista em neuropsicologia pela UNIFESP.

Segundo Yamasaki, crianças inseridas nessa lógica podem desenvolver uma “falsa percepção” de que o sucesso depende exclusivamente delas. Ao enfrentarem dificuldades, o sentimento de culpa ou frustração injustificada pode se tornar frequente. Essa visão se agrava com o ambiente digital, onde crianças e adolescentes não só consomem, mas também reproduzem discursos de ostentação e meritocracia em busca de pertencimento.

Roberta Zunega, pedagoga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ressalta que “as redes sociais criam um espaço de comparação contínua, onde a validação externa é extremamente valorizada. Muitos jovens exibem conquistas ou bens materiais para obter reconhecimento, reforçando valores ligados ao status e ao sucesso.”

"Muitos jovens exibem conquistas ou bens materiais para obter reconhecimento, reforçando valores ligados ao status e ao sucesso", diz Roberta Zunega — Foto: Freepik
“Muitos jovens exibem conquistas ou bens materiais para obter reconhecimento, reforçando valores ligados ao status e ao sucesso”, diz Roberta Zunega — Foto: Freepik

A opinião dos pais

A engenheira Karen Dias Machado, de 33 anos, administra as redes sociais do filho com frequência. Mãe de Henrique, de 9 anos, ela conta que a criança usa Instagram, Whatsapp e Youtube, mas que todos esses aplicativos ficam logados no aparelho dela. O uso também envolve regras, baseadas em diálogo e confiança, segundo a mãe. “Eu falo para ele que, no caso do Instagram, se não conhece alguém, não pode aceitar. Ele só tem familiares nas redes, amigos próximos e jogadores de futebol que ele gosta”, diz.

Embora nem ela nem o filho tenham sido impactados com conteúdo dos tais coaches mirins, Karen reforça que sempre conversa com o filho sobre os perigos da internet e para ele não acreditar em tudo que vê. “Nós sempre explicamos na base da conversa e do diálogo. Explicamos nossa realidade e já falamos que essas crianças que têm milhares de brinquedos são crianças que as lojas enviam [os produtos] para elas mostrarem [nas redes sociais]. Nós falamos que se ele quer algo, tem que conquistar”, relata.

Em relação aos coaches mirins, ela afirma que essas postagens não fazem parte da rotina do filho e que, desde muito novo, ensinou metas e tarefas diárias a ele, justamente para valorizar o trabalho, esforço e dinheiro. “Mesmo que apareça esse tipo de conteúdo para a gente, eu oriento ele e mostro a realidade dos fatos. Até para ser youtuber e ganhar dinheiro, explico que envolve muito trabalho e que não é da noite para o dia, sabe?”, pontua.

Embora as redes sociais sejam parte da rotina de muitas crianças, muitos pais buscam estabelecer limites para equilibrar o uso digital com atividades offline.

A professora de ioga Rafaela Montandon, de 36 anos, mãe de João Pedro, de 12, também compartilha a dificuldade de impor limites quando se trata do uso de redes sociais, especialmente em um mundo no qual o digital se tornou tão presente. “Eu dou um horário para ele usar o celular, mas, muitas vezes, isso fica meio livre, porque quando estou trabalhando, não consigo ter tanto controle. Eu tento sempre falar para ele da importância de fazer outras coisas além de ficar no celular”, destaca.

Embora João Pedro tenha redes sociais, a mãe diz que ele não é tão ativo nelas. “Ele começou a usar redes sociais por volta dos 9 ou 10 anos, mas ele não tem muito interesse. Ele até acessa o Instagram, mas não é algo que ele utilize muito”, conta.

Pesquisa sugere que uso frequente de redes sociais altera desenvolvimento do cérebro de adolescentes
Para Rafaela, um dos maiores desafios não é tanto o uso das redes sociais, mas o impacto que os jogos online têm no comportamento e na saúde mental do filho. “A questão do videogame é muito mais presente aqui em casa. Eu vejo como isso altera o humor dele e a interação com as pessoas. Isso é algo que me preocupa bastante”, explica.

Segundo ela, João Pedro tem dificuldades em manter o equilíbrio, já que muitos de seus amigos também jogam online por longas horas. “Às vezes, ele se compara com os amigos, dizendo que todos eles jogam até de madrugada e que só ele não pode. Mas eu sempre converso com ele sobre os efeitos disso, como afeta o humor e a energia dele”, afirma.

A mãe acredita que a exposição excessiva ao mundo digital pode ser prejudicial, especialmente para a saúde mental das crianças, ainda mais com conteúdos que envolvam dinheiro e “ostentação”. “Para mim, o mundo online é irreal. Não vejo ninguém de verdade ganhando dinheiro com isso, e não acho saudável para uma criança trabalhar com internet tão nova”, opina.

A professora de ioga reforça que não proíbe o filho de jogar ou de se conectar online, mas não concorda com a ideia de que ele viva apenas nesse ambiente digital. “É fundamental que ele faça atividades físicas e tenha trocas reais, de pessoa para pessoa. O mundo online pode até aproximar as pessoas, mas a troca humana é insubstituível”, conclui Rafaela.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *