No último sábado (16), durante os Jogos Jurídicos Estaduais, em Americana, no interior de São Paulo, alunos da PUC-SP foram filmados se referindo a estudantes da Faculdade de Direito Largo de São Francisco, da USP, como ‘cotistas’ e ‘pobres’. A Marie Claire, alunas vítimas dos ataques relatam medo, tristeza e revolta, e alunas da PUC descrevem ambiente de segregação de raça e classe dentro da universidade particular, cuja mensalidade ultrapassa R$ 4,5 mil
A estudante de Direito Manuela Ramos estava na arquibancada do Centro Cívico de Americana, no interior de São Paulo, na tarde do último sábado (16), assistindo a um jogo de handebol masculino entre sua universidade, a Faculdade de Direito Largo de São Francisco, da USP, e a adversária, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), quando o clima de lazer foi interrompido. Do outro lado da quadra, alunos uniformizados da PUC começaram a proferir uma série de ofensas racistas, classistas e aporofóbicas – termo que define a aversão e a hostilidade contra pessoas pobres.
“Estava tudo tranquilo, as baterias tocando, as pessoas cantando, torcendo, tudo bem comum. Mas, no decorrer do jogo, comecei a notar que algumas pessoas da torcida da PUC estavam subindo na grade que cerca a quadra e apontando para pessoas específicas da torcida da São Francisco, fazendo gestos de dinheiro, chamando as pessoas de pobres e cotistas, mostrando o dedo do meio. Uma dessas pessoas olhou diretamente para mim e perguntou qual era o meu pix para me mandar esmola”, conta Manuela, que está no 8º semestre do curso e é parte do Quilombo Oxê, o coletivo de pessoas negras da Faculdade de Direito da USP.
“As ofensas foram se intensificando, até que uma amiga chegou até mim muito nervosa, com os olhos marejados, e falando que tinha gravado um vídeo das agressões”, lembra. A amiga em questão é Juliana*, que também está no 8º semestre do curso de Direito da USP. Diante das ofensas, ela gravou um dos vídeos que circulam desde o último sábado (16). Nele, membros da torcida adversária aparecem chamando a torcida adversária de “pobre” e “cotista”, em tom pejorativo, e fazendo sinal de dinheiro com as mãos. É possível ver um deles usando o termo “cotista filho da puta”.
Na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, onde aguardava para registrar um boletim de ocorrência por racismo, Julliana* contou que as ofensas inicialmente foram dirigidas a um grupo de meninos negros da universidade, que estavam mais à frente na arquibancada – mas que, claro, atingiram muito mais gente.
“Comecei a fazer leitura labial e percebi que eles estavam gritando ‘cota’, ‘cotista filha da puta’. Perguntei para as pessoas do meu lado se era isso mesmo e, quando confirmaram, comecei a gravar”, lembra. “As ofensas não foram diretamente para mim, mas, como cotista, também me atingiu. Fiquei revoltada, chorei, e fui falar com a comissão organizadora do evento para entrar na torcida da PUC e tentar identificar os agressores.”
A partir de fotos e vídeos feitos por Juliana*, foi possível identificar como autores das ofensas Tatiane Joseph Khoury, Arthur Martins Henry, Matheus Antiquera Leitzke e Marina Lessi de Moraes. Os quatro são alunos de Direito da PUC e estagiavam em grandes escritórios de São Paulo (Pinheiro Neto, Castro Barros Advogados, Tortoro, Madureira e Ragazzi, e Machado Meyer Advogados, respectivamente), mas foram demitidos na segunda-feira (18) em razão do ocorrido.
A PUC, até o momento, informou apenas que investiga o caso: “A Reitoria determinou à Faculdade de Direito a apuração dos fatos, com o rigor necessário, a partir das normas universitárias e legais, promovendo a responsabilização e conscientização dos envolvidos.”
Embora essas quatro pessoas tenham sido identificadas, as alunas da São Francisco ouvidas pela reportagem afirmam que havia mais gente envolvida nas ofensas – Juliana estima que pelo menos outras dez pessoas entoavam as agressões. “Não é um problema isolado, de duas ou três pessoas, é um problema estrutural, daquela torcida inteira. Os torcedores da PUC estavam com raiva de pessoas negras e pobres por estarem ocupando o mesmo espaço de lazer que eles”, disse Manuela Ramos. “No momento, fiquei sem reação. A gente vai para esse espaço de integração universitária esperando que tenha sim uma competição, uma rivalidade, mas a gente não está preparada para uma agressão tão violenta. O que aconteceu ali foi um crime”.
Depois dos ataques, que ocorreram no segundo dos três dias de jogos, o clima mudou: “Eu fiquei muito triste e com medo de ir para festas, para jogos e ter que encontrar de novo essas pessoas. Sei que outras pessoas também ficaram com medo e deixaram de ir por medo de novas agressões ou retaliação pela denúncia que fizemos. A gente não sabe até onde o ódio racial e de classe poderia chegar. O clima dos torcedores e dos atletas da São Francisco mudou drasticamente”, descreve.
E continua: “Especialmente os alunos pretos e pobres ficaram muito vulnerabilizados com essas agressões, se sentindo mal num espaço que deveria ser de lazer. Mas o movimento negro não vai retroceder nem um passo na ocupação das universidades públicas. A USP vai ficar cada vez mais preta.”
Episódios são recorrentes na PUC
Imediatamente depois que os vídeos começaram a circular, as comissões das universidades participantes dos Jogos Jurídicos se reuniram e decidiram que a torcida da PUC-SP seria impedida de seguir participando dos eventos, que seguiram até a noite de domingo (17).
Em nota, o Quilombo Oxê classificou os atos como “posturas lamentáveis e criminosas, de supremacia branca e racismo”. Este e outros coletivos de estudantes negros e bolsistas das duas universidades – USP e PUC-SP – se manifestaram imediatamente condenando as ofensas e pedindo que as universidades agissem, especialmente implementando medidas estruturais de combate ao racismo.
“Não basta só a expulsão dessas pessoas, embora isso seja extremamente importante. O que estamos exigindo é que sejam tomadas medidas mais estruturais, como um programa de enfrentamento ao racismo dentro da PUC, dentro da São Francisco e dentro da organização dos Jogos Universitários”, explica Manuela Ramos. “Se essas pessoas aparecem num vídeo gritando contra as cotas e contra os estudantes pobres, imagine o que sofrem as pessoas pretas e bolsistas dentro da própria PUC, o ano inteiro”.
Procurados para esclarecimento, dois coletivos da PUC-SP: o Coletivo Saravá, de alunos negros, e o Coletivo Da Ponte Para Cá, de alunos bolsistas. Ambos disseram que ataques de ódio contra estudantes negros e bolsistas são comuns dentro da faculdade, que é particular – o valor da mensalidade do curso de Direito neste ano é de R$ 4.501.
“O ato de racismo ocorrido nos jogos não nos surpreendeu. Esses episódios acontecem diariamente nas salas e corredores da PUC-SP, proferidos contra alunos de baixa renda e negros, assim como a professores negros”, contaram duas integrantes do Coletivo Da Ponte Para Cá, que preferiram não se identificar por medo de retaliações dentro da universidade. “Nos últimos anos, com o aumento das mensalidades e o corte de bolsas de estudos, a PUC-SP vem se tornando um espaço cada vez mais elitizado e branco, sem uma política de permanência efetiva para alunos bolsistas.”
Elas contam que as relações de classe dentro da PUC-SP são marcadas por tensões e muita dificuldade por parte dos alunos bolsistas, que muitas vezes não podem comprar livros exigidos pelos professores, que não estão disponíveis na biblioteca, não tem roupas adequadas para ir ao trabalho, já que muitos escritórios de Direito exigem uma vestimenta social completa, e não conseguem se alimentar dentro da faculdade.
Mirelle Costa, estudante de Psicologia que integra o Coletivo Saravá e também é bolsista na PUC-SP, diz que “colegas brancos e pagantes se colocam em posição de superioridade” – por isso, não se chocou com a atitude de seus colegas de PUC nos jogos jurídicos.
“As relações raciais na PUC se dão ainda pela segregação. Nós somos atravessados pelo racismo o tempo todo. Na maioria das vezes, não acontece de forma tão explícita, mas de maneira velada, pelos olhares dos colegas e professores e pela forma como nos tratam. Essa situação é apenas um reflexo da violência que nós estudantes negros e bolsistas vivemos na PUC-SP”, percebe.
Apoio fora do ambiente universitário
Coletivos das universidades envolvidas, além de outras que participavam dos Jogos Jurídicos Estaduais, além da Liga Atlética que organizava o evento e outras organizações estudantis se manifestaram, todas condenando as ofensas. Mas, fora do ambiente universitário, o assunto chegou a órgãos como a Câmara dos Vereadores e a Defensoria Pública, que prestaram apoio às vítimas e cobraram respostas das instituições envolvidas.
A Bancada Feminista do PSOL na Câmara dos Vereadores de São Paulo protocolou, na segunda-feira (18), uma representação ao Ministério Público do Estado de São Paulo pedindo a responsabilização criminal dos estudantes da PUC-SP.
No mesmo dia, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo enviou, por meio do Núcleo de Promoção da Igualdade Racial (Nupir), ofícios às direções das Faculdades de Direito da PUC e da USP solicitando apuração dos fatos e auxílio a estudantes vítimas de racismo e aporofobia durante os jogos. O Nupir afirmou, em nota, que “tais atos configuram crimes previstos em lei e violam os princípios da igualdade e da dignidade humana, garantidos na Constituição e em diversas outras normas”.