Com o passar do tempo, famílias afetadas pela tragédia em Jaraguari perderam as esperanças de uma resolução
37 anos de história perdidos em questão de minutos. Dois meses após o rompimento da barragem do lago artificial no loteamento de luxo Nasa Park, localizado na divisa entre os municípios de Jaraguari e Campo Grande, as famílias atingidas pela tragédia ainda esperam por respostas.
Na casa de Luzia Ramos, que um dia abrigou uma família, agora restam apenas escombros. Não há mais distinção entre os cômodos — o que era sala, quarto ou cozinha se fundiu em um cenário desolador, enquanto uma espessa camada de barro cobre o chão, impossibilitando reconhecer o que ali já existiu.
O sofá, que antes acolhia os moradores, está irreconhecível, misturado a pedaços de madeira e galhos trazidos pela força da água e lama. O cheiro forte de material em decomposição domina o espaço, tornando o ar quase irrespirável. Nesse ambiente, o silêncio reflete a ausência de vida.
Dois meses sem respostas
Enquanto as famílias seguem há dois meses sem um teto, o loteamento de luxo, Nasa Park, já exibe sinais de reconstrução, com inúmeros anúncios surgindo a cada dia e casas de alto padrão comercializadas entre R$ 2,5 a R$ 5 milhões. Nesse cenário, o lucro se sobrepõe ao amparo humano. Enquanto os interesses econômicos avançam a passos largos, a recuperação da dignidade das famílias afetadas ocorre de forma lenta.
Logo após o incidente, Gustavo Henrique Bertocco de Souza, da 1ª Promotoria de Justiça de Bandeirantes e representantes do Ministério Público realizaram uma vistoria e elaboraram um relatório preliminar que aborda os danos ambientais, a identificação das vítimas e o levantamento dos prejuízos sofridos pelas famílias afetadas.
Entre essas famílias está a de Luzia. Embora seja natural de Bandeirantes, foi naquela terra, entre Campo Grande e Jaraguari, que ela fincou raízes, criou dois filhos e construiu as memórias de uma vida inteira. Foi ali também que Luzia viu tudo se perder.
“Não se constrói uma casa em dois dias. Levei 37 anos para erguer tudo, mas perdi em dois minutos. Estou aqui por milagre. Se meu filho não tivesse sido rápido, nem eu, nem minhas netas teríamos sobrevivido”, conta.
‘Tudo o que lembro é de ouvir ele gritar’
Luzia lembra com clareza o dia do rompimento da barragem. Ela estava em casa com as duas netas, ainda era manhã, quando Thiago Lopes, seu filho, chegou alarmado, dizendo que a barragem havia se rompido. Em questão de segundos, cerca de 800 milhões de litros de água desceu em correnteza por 9 km e atingiu a casa.
“Foi terrível. Minhas netas tinham acabado de chegar e, como sempre, estavam na cama comigo. Thiago entrou e disse que estavam comentando sobre o rompimento da barragem. Na hora, senti um aperto no peito. Logo depois, ele saiu para ver a situação, e tudo o que lembro é de ouvir ele gritar desesperado, pedindo que saíssemos da casa o mais rápido possível.”
‘Se tivesse perdido 1 minuto, não estaríamos aqui’
Para Thiago, primeiro da família a saber do rompimento e responsável por salvar sua mãe e as duas sobrinhas, as lembranças ainda reverberam. Quem o alertou foi seu cunhado, e, no momento, ele até pensou em ir até o córrego Estaca verificar o nível da água, mas ao sair da casa a barragem já havia rompido.
“Atendi a ligação dele, mas só deu tempo de sair no quintal e já ouvi o barulho da água. Se tivesse perdido 1 minuto, não estaríamos aqui. Na hora, só pensei em salvar minha vida e a da minha família. Entramos no carro e dirigi até a parte mais alta que consegui alcançar”, relembra.
Assim, a família saiu sem olhar para trás. De móveis a fotos de família, tudo se perdeu em meio a água que alcançou cerca de 2,4 metros de altura. Após a tragédia, a família passou a morar de favor na casa do pai de Thiago, localizada a poucos metros à frente e que, por pouco, também não foi atingida. Desde então, Luzia e o filho não voltaram a entrar na casa, marcada pela tragédia.
‘Não é apenas perda material’
Embora a barragem não tenha atingido diretamente a casa do pai de Thiago, a enxurrada levou cerca de 12 porcos e várias galinhas, além de destruir completamente as plantações, que eram sua principal fonte de sustento. Ele relembra que, no dia da tragédia, seu pai se recusou a deixar a casa, pois não queria abandonar os animais. Somente após muita insistência aceitou sair e deixar tudo para trás.
“Dizem que é só perda material, mas não se limita a isso. Só nós sabemos o quanto custou tudo o que construímos. Vivi 35 anos no mesmo lugar, e de repente tive que sair só com a roupa do corpo para salvar minha família… Então, não se limita a perda material.”
Desesperança e revolta
Dois meses após a tragédia, o sentimento de tristeza deu lugar à revolta. Após inúmeras reuniões com o MPMS, a família de Thiago perdeu as esperanças de que o caso tenha uma resolução.
“O sentimento que fica é de impotência. Para nós, que perdemos tudo, o que importa é o resultado. Ir a reuniões não resolve nada. Os donos do Nasa Park até agora não se apresentaram para nós, não vieram aqui propor um acordo. Só queremos justiça”, diz Thiago.
‘Estão mais preocupados com as mansões do que conosco’
Para Luzia, é como um ciclo interminável, em que cada reunião a faz reviver tudo o que passou. Por isso, ela decidiu não comparecer mais às reuniões com o Ministério Público.
“Não temos assistência de ninguém. Nós nos reunimos para ouvir inúmeras coisas que não gostaríamos de escutar. Eles estão mais preocupados com as mansões do Nasa Park do que conosco, que perdemos tudo. Ninguém do governo veio aqui. Me sinto abandonada e desrespeitada.”
26 anos sem manutenção e inúmeras irregularidades
Construída em 1998, a barragem do loteamento de luxo Nasa Park não passou por nenhuma manutenção técnica em 26 anos desde a construção, o que pode ter motivado o rompimento da estrutura no dia 20 de agosto deste ano. Nesse meio tempo, o local acumulou irregularidades.
Em setembro, o CREA-MS (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Mato Grosso do Sul), confirmou que não encontrou nenhuma ART (Anotação de Responsabilidade Técnica) expedida para manutenção no local. O único registro do CREA-MS é de construção da barragem, em 1998. Ou seja, a barragem passou 26 anos sem manutenções legais.
Empresa descumpriu acordo com o MPMS
Pouco mais de um ano antes do rompimento de barragem do lago artificial do Nasa Park, o MPMS havia encerrado investigações contra o empreendimento após firmar um acordo com os empresários. Apesar do interesse público por envolver meio ambiente, o processo tramitou em total sigilo no órgão. No entanto, em agosto o Ministério confirmou que a empresa não cumpriu o acordo.
O promotor de Justiça de Bandeirantes, Gustavo Henrique Bertoldo, disse que a empresa não cumpriu o acordo completamente. “Uma cláusula não foi cumprida, que é reparar alguma questão do dano erosivo”.
Porém, os pontos firmados no TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) os quais os sócios da A&A Empreendimentos Imobiliários Ltda (CNPJ 02.231.914/0001-99), empresa proprietária dos loteamentos e do lago, devem cumprir não foram divulgados pelo MPMS.
Além disso, o promotor disse em audiência pública que o acordo “não tem nada a ver com a barragem em si”.
Multa pelo Ibama
Em 2008, a empresa A&A Empreendimentos Imobiliários S/C Ltda – proprietária dos loteamentos Nasa Park I e II –, havia sido multada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) por irregularidades ambientais. Na ocasião, o Ibama aplicou multa de R$ 160 mil em nome do proprietário, Alexandre Alves de Abreu.
Conforme constatado pelos técnicos houve infração por: “ocupar irregularmente área de preservação permanente no Loteamento Nasa Park I e descaracterizar e danificar área de preservação permanente no Loteamento Nasa Park II, através de raleamento de vegetação ciliar e não adoção de técnicas de contenção de processos erosivos, em uma área total de 8,0 ha”.
Assim, o processo tramitou internamente no órgão até maio de 2019, quando acabou sendo remetido à Justiça Federal. Sem o pagamento da infração, tornou-se execução fiscal, no valor atualizado de R$ 111.803,00.
Bloqueio de R$ 35 milhões
Em setembro, a pedido da Promotoria de Justiça de Bandeirantes, o Juiz da comarca, Daniel Foletto Geller, decidiu pela Tutela Antecipada em Caráter Antecedente e determinou a indisponibilidade de valores e bens, até o limite de R$ 35 milhões, das empresas responsáveis pela represa do loteamento Nasa Par.
“Considerando que, por diligências infrutíferas em busca de patrimônio passível de penhora, comprovou-se possíveis dificuldades de ressarcimento dos prejuízos causados com o rompimento da represa, ou seja, atestada a insuficiência patrimonial da sociedade empresária para compensar os prejuízos por ela causados, o juízo deferiu ainda o pedido de desconsideração da personalidade jurídica das empresas requeridas, sendo bloqueado o mesmo montante no patrimônio de cada um de seus sócios”.
Conforme o documento, a solicitação do MPMS visa garantir recursos financeiros suficientes para reparação integral dos danos sofridos pelas famílias atingidas pelo desastre. Segundo o MPMS, essas famílias não podem aguardar o processo judicial para poder recomeçar suas vidas.
“Relatórios também apontaram, preliminarmente, a existência de extensos danos ambientais, econômicos e sociais, os quais, além de serem reparados, devem ser mitigados, sob risco de agravamento e, por consequência, de prejuízo irreparável ou de difícil reparação”, disse o MP.
A ação é resultado de visitas técnicas feitas por membros do MPMS, além de documentos elaborados por equipes de órgãos públicos envolvidos nos levantamentos e ainda de reunião realizada, por iniciativa do órgão, com 11 famílias atingidas diretamente pelo rompimento da barragem.
O que resta para as famílias atingidas?
Seis dias após o rompimento da barragem, em 26 de agosto, a A&A Empreendimentos Imobiliários emitiu uma nota oficial comprometendo-se a “ressarcir os danos sofridos” pelas famílias cujos bens foram atingidos pelo rompimento da barragem.
Segundo a nota, a empresa cadastrou famílias afetadas com o objetivo de viabilizar o ressarcimento, além de realizar a distribuição de cestas básicas, água mineral e roupas. No entanto, uma das famílias afirma que as ações ocorreram apenas nas primeiras semanas e que, sem assistência contínua, agora dependem exclusivamente do apoio de familiares e amigos.
Órgãos públicos afirmam prestar toda assistência às famílias
Questionado sobre o andamento do processo e a assistência prestada às famílias, o Imasul (Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul) afirmou que equipes de fiscais ambientais atuam de forma contínua e rigorosa na fiscalização das condições do local afetado pelo rompimento da barragem.
“As inspeções ocorrem quinzenalmente, com foco na análise da qualidade da água e na avaliação das medidas de mitigação previamente previstas. Acompanhamos de perto a implementação dessas ações, com o intuito de garantir a proteção dos ecossistemas locais e a segurança da população”, informou o órgão em nota.
Embora o Imasul diga que há fiscalização contínua, as famílias afirmam que, desde o rompimento da barragem, nenhum representante do Imasul ou Defesa Civil esteve presente no local para verificar os danos às propriedades atingidas.
O MPMS, por sua vez, afirma que continua prestando apoio às famílias afetadas. Na última reunião, realizada em 18 de setembro, os Promotores de Justiça do MPMS esclareceram às vítimas os procedimentos para a solicitação de danos materiais e morais individuais resultante da tragédia.
Durante a oitiva, os promotores detalharam as estratégias para os presentes e concederam um prazo de 10 dias para que as famílias apresentassem a documentação referente aos danos, além de manifestarem seu interesse na atuação coletiva do MPMS no prol das famílias afetadas. No entanto, desde então, as famílias ainda aguardam um retorno.