Refletindo sobre o tema, mulheres questionam o motivo de ter atos de serviço como sua ‘linguagem do amor’. A psicóloga Priscila Sanches disserta sobre a socialização de mulheres e de homens: ‘Realidade que faz com que o seu valor esteja muito atrelado à utilidade’
Você já ouviu falar nas cinco linguagens do amor? A teoria foi publicada em 1992 pelo pastor e conselheiro matrimonial estadunidense, Gary Chapman, em seu livro As 5 Linguagens do Amor: Como Expressar um Compromisso de Amor a Seu Cônjuge (Mundo Cristão, 208 páginas, R$41). Na obra, o escritor declara que o amor é vivido de diferentes maneiras pelas pessoas: cada uma teria uma linguagem de amor primária e os casais dariam um match melhor se um “falasse” a língua preferida do outro. São eles:
- palavras de afirmação: elogios, incentivos e declarações;
- tempo de qualidade: dar atenção completa e exclusiva à pessoa;
- presentes: uma flor, um chocolate ou algo feito por você;
- atos de serviço: realizar tarefas e ajudar em coisas práticas;
- toque físico: andar de mãos dadas, cafuné, abraços, beijos e sexo.
O conceito criado por Chapman segue fazendo sucesso mesmo depois de 30 anos, vendendo mais de 20 milhões de cópias até os dias de hoje. O assunto se popularizou tanto que até gerou memes entre a Geração Z. Vídeos do TikTok com a hashtag #LoveLanguage têm mais de 5 milhões de visualizações.
O tópico, porém, também é alvo de reflexão. No Instagram, a chef e comunicóloga Samanta Luz questionou suas seguidoras: “Será que sua linguagem do amor é atos de serviço mesmo, ou será que você foi ensinada a servir o outro compulsivamente como a maioria das mulheres foi ensinada? Será que você só se sente amada quando está sendo útil?”.
Essa análise gerou um debate na rede social. Uma das respostas, da professora Júlia Costa, diz como ela foi criada para ser cuidadora. “Mergulhei nessa reflexão durante muito tempo e finalmente aprendi que em muitas relações humanas da minha vida eu era apenas útil, não amada. Na maior parte dela, na verdade, porque fui criada pra ser cuidadora, servir, abdicar de mim em função dos outros”, declara.
A própria Samanta Luz reitera como o caso é ainda mais estridente para pessoas pretas: “Para nós, é ensinado não só pelos nossos pais ou cuidadores, mas pela sociedade, que nos vê como uma pessoa útil e serviçal. Chega uma hora que temos que saber nosso lugar e nos despir dessa roupa que nos colocaram”.
Priscila Sanches, psicóloga com especialidade em questões de gênero, lembra que o livro de Chapman traz os atos de serviço como a linguagem do amor mais comum para as mulheres e para os homens as palavras de afirmação. “O perigo é não entender essa obra com olhar mais crítico, trazendo a problemática dos papeis de gênero, da socialização de mulheres e de homens, para compreender porque cada linguagem dessa é mais comum em homens e outras mais comum em mulheres.”
Ela também discute que atos de serviço é uma “linguagem de amor” tão comum entre as mulheres por conta da socialização feminina. “As mulheres são ensinadas a se doar, a cuidar dos outros e a não se priorizar, essa é uma realidade que faz com que o seu valor esteja muito atrelado à utilidade dela, a função do cuidado, ao da reprodução também.”
Para a especialista, essa reflexão é muito pertinente, porque faz com que as mulheres pensem sobre as influências sociais que recebem. “Muitas vezes os nossos padrões de comportamento são lidos como naturais, até biológicos, e esse é um grande equívoco. Muito se tem para comentar sobre as influências culturais e sociais que a gente recebe, especialmente como mulheres em uma sociedade tão machista.”
A problemática do livro
Em artigo publicado em janeiro deste ano na revista Current Directions in Psychological Science, um grupo de pesquisadores canadenses questionou a validade científica do conceito publicado por Chapman. Revisando a literatura científica da obra, eles concluíram que o livro não tem suporte em evidências empíricas.
“Apesar da popularidade do livro de Chapman, há uma escassez de trabalho científico sobre as linguagens do amor e, coletivamente, não fornece forte suporte empírico para as três suposições centrais da obra de que (a) cada pessoa tem uma linguagem de amor preferida, (b) existem cinco linguagens do amor e (c) os casais ficam mais satisfeitos quando os parceiros falam a língua preferida um do outro”, afirma o texto.
Priscila Sanches também enfatiza que, por ter sido escrito por um pastor, as afirmações dentro da obra trazem alguns conceitos muito comuns também nos dogmas religiosos — e é preciso se atentar a elas com um olhar crítico.
“Por exemplo, o perdão ser um ato de amor também tem uma influência religiosa muito grande. Ele acaba sendo até uma maneira de revitimizar mulheres que são cobradas a perdoar os seus abusadores, os seus parceiros que cometem traições compulsivas ou violência doméstica e muitas vezes essas obras podem simplificar muito esse tipo de atitude e tratar o perdão apenas como uma virtude feminina”, observa.