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73% das mulheres começam a fazer tarefas domésticas e de cuidado antes dos 14 anos; só 9% enxergam isso como trabalho

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Pesquisa inédita da plataforma Elas Trabalham ainda mostra que quase metade das brasileiras bancam custos essenciais do lar, mesmo ganhando menos que os homens, e que 47,2% conhecem mulheres na família que foram impedidas de trabalhar fora pelo marido ou outro membro familiar do gênero masculino

 

 

No Brasil, 73,4% das mulheres começaram a realizar tarefas domésticas e de cuidado antes dos 14 anos, mas apenas 9,4% consideram que começaram a trabalhar neste período. Esse seria um demonstrativo de que as brasileiras não veem o desempenho dessas funções como um trabalho. É o que aponta uma pesquisa inédita realizada pela plataforma Elas Trabalham.

O novo levantamento busca mapear de que forma as mulheres enxergam sua mão de obra e se consideram o próprio trabalho como essencial, com ênfase nas atividades ligadas ao cuidado de outras pessoas e da própria casa.

A pesquisa também aponta para outras desigualdades de gênero relacionadas a distribuição desigual de renda e inserção no mercado de trabalho. Por mais que 52% das mulheres ganhem menos do que os homens, 49% é quem banca os gastos essenciais do lar. Além disso, 47,2% atestam que alguma mulher de suas famílias foi impedida de trabalhar fora de casa por um marido ou outra pessoa do gênero masculino (como pais, avôs ou tios, por exemplo).

Além disso, 58,4% das respondentes dizem que tem filhos, mas a maioria (28%) não conta com uma rede de apoio. Das que contam, 26,5% é paga e fixa e 15%, paga e não ocasional. Enquanto 10,9% recorrem a rede de apoio não paga e fixa – pode ser formada familiares, vizinhas e amigas, por exemplo, que diariamente cuidam das crianças para que esta mulher possa exercer trabalho remunerado.

O questionário que baseou o estudo Trabalho da mulher pela visão delas: como mulheres enxergam a sua mão de obra? foi respondido entre maio de 2023 e janeiro de 2024 por 1.412 brasileiras maiores de 18 anos, residentes em todos os estados do país.

“Queremos mostrar que as mulheres trabalham desde que o mundo é mundo e que não existe um momento do desenvolvimento da nossa sociedade em que as mulheres não trabalhassem dentro de casa, fora ou em ambos os espaços”, diz Thaise Xavier, jornalista e fundadora do Elas Trabalham.

O objetivo dos dados é de auxiliar a combater a ideia “absurda e machista” de que mulheres que ficam em casa não trabalham; além de evidenciar a dupla jornada – nos casos em que elas trabalham fora – e a divisão desigual desse trabalho desde a infância – como quando meninas são educadas para ajudar na limpeza enquanto meninos podem continuar brincando.

 

“Nossa pesquisa não é somente sobre o trabalho do cuidado, porém esse tema é abordado justamente porque ele é feito esmagadoramente por mulheres, desde muito novas. Além disso, não é reconhecido como um trabalho, mas como algo inerente às mulheres só pelo fato de serem mulheres”, explica.

 

Maioria das brasileira começa a fazer trabalho doméstico antes dos 14 anos

39,2% das respondentes consideram que começaram a trabalhar acima dos 18 anos, o que significa 554 das mulheres que participaram do levantamento. No entanto, 1.036 mulheres afirmam que passaram a fazer trabalho doméstico e de cuidado dentro de casa antes dos 14.

É o caso da cuidadora Sandra Oliveira Santos, 47 anos. Quando tinha dez, migrou com a família de uma cidade no interior da Bahia para a capital paulista. Para que os pais pudessem trabalhar, ela se tornou a principal responsável pelo cuidado dos irmãos mais novos, um de cinco e outro de dois anos. As obrigações iam desde levá-los à escola até preparar o almoço e ajudar no banho.

Sandra também era a pessoa que fazia o serviço doméstico da casa – com exceção de lavar as roupas. “É algo doloroso porque sinto que acabei perdendo a minha infância ao cuidar deles. Logo depois comecei a trabalhar para ajudar em casa e parei de estudar”, diz Sandra. “Por mais que fosse difícil, não considero que eu estava trabalhando. Estava apenas ajudando meu pai e minha mãe”, pondera.

Aos 11 anos, a professora de inglês Bruna Almeida, 24 anos, se tornou a principal responsável pelos cuidados da bisavó, que tinha Alzheimer, e da avó, diagnosticada com câncer. “Diziam que eu era a pessoa ideal porque as outras trabalhavam e precisavam descansar, enquanto eu era nova e ‘não tinha obrigações’”, lembra. Até os 20 anos, ela equilibrou a rotina de estudos com os cuidados delas, e afirma que o pai não se envolvia nas atividades, por mais que vivesse na mesma casa.

“Com certeza eu estava trabalhando”, diz. “Lembro que tinha que estudar de madrugada e, em alguns dias, chegava na escola com atestado médico porque tinha as acompanhado em consultas. A socialização com pessoas da minha idade também foi difícil. Enquanto falavam de ‘coisas de jovens’, eu pensava se elas tinham comido e se estava tudo bem em casa.”

Há ainda uma predominância de mulheres que, enquanto meninas, precisaram conciliar o trabalho doméstico em casa e exercer um ofício remunerado para contribuir com as despesas de casa.

É o caso de Cleuzionice da Silva Santos, de 72 anos. Além de ter começado a cuidar do pai e dos irmãos com oito anos, ela se tornou empregada doméstica em torno dos 11. Até hoje ela trabalha em casa de família.

Assim como Bruna, ela encara que na tenra idade estava encarando uma dupla jornada de trabalho, algo que se sucedeu no resto da vida depois de casar e ter filhos:

 

“Continuo trabalhando, mesmo aposentada, para sustentar meus dois filhos, que desenvolveram transtornos mentais. Quando chego do trabalho, ainda tenho que cuidar dele. Sou só eu para organizar as coisas”.

 

Xavier afirma que esse cenário vivido por Cleuzionice é comum, sobretudo, entre mulheres pretas e pardas. “Muitas começam a realizar tarefas domésticas antes dos 14 anos de maneira ‘profissional’, trabalhando nas casas onde as mães são ou foram empregadas domésticas”, diz, citando depoimentos recebidos na comunidade da plataforma Elas Trabalham.

Contudo, apenas 20,9% da respondentes da pesquisa divulgada são pardas e 6,2% se autodeclaram pretas. 69,3% das respondentes são brancas. Portanto, seria necessário mais dados para comprovar essa experiência. “O Brasil é muito grande e diverso de realidades. Nosso esforço é para ouvir mais mulheres anualmente para conseguirmos montar uma base de dados mais próxima da realidade diária do país”, explica Xavier.

A rotina vivida por Cleuzionice na infância a fez largar os estudos depois de ser alfabetizada. “Naquela época os homens não faziam serviço de casa. Eram as mulheres, e como sou a mais velha, fazia tudo”, diz. “Meu irmão tinha vida boa, saía, passeava e não trabalhava. Às vezes eu que tinha que ajudar a sustentá-lo”, conta.

Relatos como o dela são comuns no país, dada a desigualdade de distribuição de trabalho doméstico e de cuidado entre homens e mulheres e a invisibilização destes ofícios não remunerados. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já demonstram isso: só em 2022, mulheres dedicaram 21,3 horas aos afazeres domésticos e de cuidado por semana, enquanto homens dedicaram 11,7 horas.

Como reduzir desigualdades de gênero no trabalho de cuidado

Uma das principais alternativas que podem equiparar a desigualdade de gênero no trabalho doméstico e de cuidado é a criação de uma Política Nacional do Cuidado, que está em desenvolvimento por vários ministérios do governo Lula, mas caminha de forma morosa.

Xavier afirma que essa política pública, assim como outras que visam as mulheres, não são vistas como prioridade por mexerem na estrutura patriarcal que beneficia os homens, que são quem detém os espaços de tomadas de decisão políticas.

 

“Por que jogar luz e mostrar para as mulheres que elas têm trabalhado desde sempre em um trabalho completamente fundamental para nossa existência sem receber nada por isso, muito menos o reconhecimento de que é um trabalho? Não é interessante”, diz.

 

Para a jornalista, só é possível mudar esse cenário com uma ocupação maior e mais relevante de mulheres em espaços políticos e enquanto as mulheres não reconhecerem o trabalho do cuidado como trabalho.

“Enquanto mulheres acreditarem que não trabalham ou que o trabalho do cuidado é algo natural à elas por serem mulheres, continuaremos tendo uma legião de mulheres sobrecarregadas mental e fisicamente, sustentando o mundo geração a geração”, reflete.

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