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TJ emite nota que pode frear a “farra da judicialização da saúde”

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No ano passado foram julgados mais de 10 mil ações relativas ao setor de saúde e em muitos casos os valores exigidos por médicos e advogados são “impagáveis”

 

Mensalmente são sequestrados em torno de R$ 2,8 milhões dos cofres da prefeitura de Campo Grande por conta de decisões judiciais que determinam o ressarcimento a pacientes tratados em hospitais particulares.

E em meio a este cenário que alguns classificam como “farra da judicialização da saúde”, o Tribunal de Justiça acionou seu recém-criado Centro de Inteligência e emitiu nesta semana uma nota técnica para auxiliar os magistrados na hora de tomarem decisões mais acertadas sobre os valores que devem ser sequestrados.

Esse Centro de Inteligência, composto por desembargadores, juízes e servidores foi criado por orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em maio de 2021, e sua principal missão é auxiliar em questões sobre as quais existe grande número de ações judicias.

E o caso da saúde é um destes temas. Só no ano passado o Tribunal de Justiça (TJ-MS) distribuiu 10.887 procedimentos e realizou 10.153 julgamentos a respeito da saúde no Estado, tanto pública quanto suplementar. Somente a Defensoria Pública ajuizou, em Campo Grande, 1.980 ações individuais em 2023.

Embora a nota técnica, a oitava desde a criação deste Centro de Inteligência, não diga explicitamente que existe muito exagero nos valores destes sequestros, ela não deixa dúvidas a respeito.

Ao analisar 35 processos no Estado, alguns deles já concluídos e com o dinheiro sequestrado, o Centro de Inteligência viu que os pedidos dos advogados superaram os R$ 16 milhões em ressarcimentos, o que equivale a cerca de R$ 460 mil por pedido.

Este valor, cita a nota técnica, é superior aos R$ 15 milhões que a União repassou no ano passado ao Estado de Mato Grosso do Sul para encurtar a fila de cirurgias eletivas.

E, só na fila das consultas e cirurgias ortopédicas existem quase oito mil pacientes, segundo uma das integrantes deste Centro de Inteligência, a juíza Janine Rodrigues de Oliveira Trindade, de Três Lagoas.

Ao citar este número ela se referia a uma ação civil pública que o Ministério Público Estadual ajuizou em abril deste ano indicando uma demanda reprimida de 3.530 consultas iniciais para cirurgias ortopédicas de coluna, 1.667 para cirurgias de ombro, 1.350 para cirurgias de quadril e 1.207 para cirurgias de mão, totalizando 7.754 pacientes na fila.

E, se cada um dos 7,7 mil pacientes efetivamente passasse por cirurgias em hospitais particulares e exigisse um ressarcimento médio de R$ 460 mil, que é o valor médio pleiteado nos 35 processos analisados pelo Centro de Inteligência, seriam necessários nada menos de R$ 3,5 bilhões somente para acabar com a fila no setor de ortopedia.

EXAGEROS

Embora não queira fazer juízo de valor sobre as ações que cobram ressarcimento, a juíza Janine, que foi uma das relatoras da nota técnica, admite que existem pedidos com “valores muito altos”. O próprio documento traz exemplos concretos disso.

No caso de uma cirurgia de coluna, por exemplo, o autor da ação pedia R$ 605 mil (com pós-operatório). Mas, se o juiz aplicasse o valor definido com base em uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2021 (Tema 1033), o valor seria de apenas R$ 15.185,94.

Este valor definido pelo STF, porém, entende a juíza, “é ínfimo e está longe de cobrir os custos do hospital”. E diante desta diferença abismal, os magistrados simplesmente enfrentam um impasse praticamente insolúvel.

Neste caso específico citado na nota técnica, o juiz buscou um “meio termo”, exigindo um orçamento de um hospital. Com isso, o valor pelo procedimento ficou em R$ 109.281,82 (sem consulta pré-operatória e sem pós-operatório).

DIÁLOGO COM O STF

E esta nota técnica foi emitida justamente para tentar reduzir os impasses dos magistrados e para deixar claro que o critério de ressarcimento definido pelo STF é inaplicável para a realidade atual, já que ela tem uma defasagem da ordem de 630%. O índice foi apontado em dezembro do ano passado, quando o Congresso aprovou norma prevendo a correção anual da chamada tabela SUS..

Em sua decisão, o STF determinou que os hospitais privados que atendessem pacientes que seriam de responsabilidade do poder público recebessem o valor da tabela SUS, com acréscimO de 50%, o que simplesmente não cobre os custos dos tratamentos.

Naquela decisão, porém, os ministros disseram que os juízes poderiam chegar a um valor alternativo. Ou seja, nem o STF emitiu uma norma objetiva na qual os magistrados possam se basear para definir os valores. E, por conta disso é que ocorrem muitos sequestros com valores exagerados.

DEMANDA CRESCENTE

No ano passado, por exemplo, foram sequestrados R$ 27.042.222,49 somente dos cofres da prefeitura de Campo Grande, o que equivale a R$ 2,25 milhões mensais. E esta “sangria” aumenta ano após ano.

No primeiro quadrimestre de 2024, a média mensal subiu para a casa dos R$ 2,8 milhões, conforme dados repassados à Câmara de Vereadores pela secretária municipal de Saúde, Rosana Leite de Melo.

“Isso é preocupante, porque é um recurso que muitas vezes ‘nós nem temos’, não está na nossa programação”, afirmou ela em audiência pública no final de maio na Câmara.

Tanto a secretária quanto a nota técnica do Tribunal de Justiça deixam claro que a crescente judicialização é resultado da própria lentidão do poder público, que não consegue atender à demanda e por isso surgem as filas, as ações e as decisões judiciais obrigando municípios e o governo estadual a bancarem determinados tratamentos, o que acaba prejudicando o fluxo normal de atendimentos

No ano passado, conforme estimativa da administração estadual, a judicialização da saúde custou em torno de R$ 100 milhões aos cofres estaduais, conforme afirmou o deputado Caravina em meados de abril deste ano, quando Assembleia criou uma espécie de força-tarefa para tentar frear aquilo que chamaram de sangria dos cofres públicos.

ESQUEMA

Ao responder à ação do MPE relativa à fila de 7,7 mil pacientes da ortopedia, a Procuradoria-Geral do Município de Campo Grande revelou a existência de uma espécie de esquema envolvendo médicos e advogados que forçam a judicialização para aumentar seus rendimentos.

Na defesa da prefeitura, a procuradora Viviani Moro afirma que os custos desses procedimentos, solicitados via processos judiciais, contribuem para o aumento das filas na saúde pública.

“Desde a judicialização da saúde, inúmeros profissionais médicos e empresas encontraram nas ações meios para obter melhores lucros”, afirmou a procuradora.

“Por uma questão lógica, tais profissionais não se interessam em realizar o procedimento no âmbito do SUS, cujo custeio de tais procedimentos é pífio. E por mais que os serviços estejam contratualizados, o Gestor Público não possui finanças suficientes para subsidiar valores equiparados com os que são praticados no âmbito privado”, complementou a procuradora jurídica.

Em um exemplo citado por ela, uma cirurgia ortopédica orçada em quase R$ 600 mil inclui uma prótese e honorários médicos de R$ 120 mil, além de outros custos. Todos os procedimentos, segundo a procuradora, estão disponíveis no sistema SUS, mas tanto hospitais quanto advogados estariam preferindo a judicialização para melhorar seus faturamentos.

Nesta situação, além dos ressarcimento ao hospital, o poder público pode ser obrigado ainda a pagar em torno de R$ 120 mil em honorários de sucumbência ao advogado da parte contrária, valor não incluído na ação.

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