O Dia dos Namorados está chegando e se tornou muito comum trocar presentes e fazer declarações amorosas. Se por um lado essa prática apresenta expressões de afetividade, carinho e dedicação, por outro, pode ocultar traços de algo muito frequente na nossa cultura: as relações abusivas.
Viver um relacionamento abusivo é um processo mais complexo do que se pode supor à primeira vista. Raramente um relacionamento já se inicia evidenciando as características abusivas. Normalmente, trata-se de um processo que vai se aprofundando ao longo do tempo de convivência a partir de um domínio psicoemocional de uma das partes sobre a outra.
Esse é um assunto sério e que merece absoluta atenção e cuidado de todos os segmentos sociais. De acordo com dados do relatório publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), somente em 2023 foram registrados 1.463 casos de feminicídio no Brasil, cerca de um caso a cada seis horas. Esse é o maior número registrado desde que a lei contra feminicídio foi criada, em 2015.
A pesquisa apontou que 18 estados apresentaram uma taxa de feminicídio acima da média nacional, de 1,4 mortes para cada 100 mil mulheres. Entre eles, o estado de Mato Grosso apresentou a maior taxa no ano passado, com 2,5 mulheres mortas por 100 mil. Entre 2015 e 2023, um total de 10,65 mil mulheres foram vítimas de feminicídio.
O psiquiatra austríaco Viktor Frankl fala de dois comportamentos humanos que favorecem a perpetuação de situações de violência: o conformismo e o totalitarismo. O primeiro (conformismo) é caracterizado pela aceitação sem oposição do que fazem conosco por não sabermos o que fazer. Já no segundo (totalitarismo), há uma imposição da vontade de um dos parceiros, desconsidera-se completamente a outra pessoa e suas as diferenças, não há empatia.
Assim, uma relação abusiva é necessariamente totalitária, já que uma das partes desconsidera deliberadamente a outra e a subjuga às suas vontades. É importante frisar que uma relação abusiva não começa declaradamente abusiva, ela vai construindo um domínio sobre o outro.
Inicialmente, há uma tendência ao encantamento, movimentos sedutores com elogios, agrados e dedicação quase exclusiva à pessoa. Posteriormente, vai-se havendo um controle em todas as instâncias da vida do outro: rede de relacionamento, vestimenta, lugares aonde vai, atividades de lazer, etc. Por fim, surgem as críticas, o menosprezo e os xingamentos, proibições no ir e vir, exclusão da convivência com amigos e familiares e agressões que podem escalar de humilhações psicológicas para físicas.
Há na vítima um sentimento em níveis variados de insegurança e inferioridade, além da baixa estima e da percepção distorcida da relação consigo, da relação e da realidade. O agressor costuma se manter em um patamar de alguém que “não faz por mal” ou “que exerce um cuidado além da conta” ou “que mudará”.
Mesmo tendo a percepção do que está acontecendo, são muitos os fatores que podem dificultar para que a vítima saia de um relacionamento abusivo, tais como a dependência financeira, a dependência emocional, a pressão familiar, a pressão religiosa, o medo do que pode acontecer se denunciar e a falta de apoio social para sua emancipação.
Trata-se de uma problemática cultural no Brasil que deve implicar a todos nós, uma vez que estamos educando os nossos filhos e filhas a partir de como nos relacionamos em sociedade e da maneira como desenvolvemos e exercemos a nossa cidadania.
Políticas públicas de apoio a vítimas de abuso têm crescido no Brasil, contribuindo para a conscientização social e a introdução de novas perspectivas em nossa cultura. Graças a essas ações, cada vez mais pessoas têm buscado ajuda por meio dos serviços de saúde mental públicos e privados para construir novas relações e romper com o ciclo da violência.
Ainda assim, é preciso mais. Mais conscientização, mais políticas de educação e promoção social, mais iniciativas que nos aproximem pela via do afeto, da convivência com as diferenças, em que a perspectiva totalitária de um indivíduo ser subjugado pelo outro não faça mais sentido.