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A vida de mulheres com baby fever: ‘Eu quero um bebê, e quero agora’

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Alguns movimentos encontram ainda mais força quando expostos ao caráter viral da internet. Esse é o caso da trend “baby fever”, na qual mulheres exibem nas redes a vontade obsessiva de ter um filho

 

“Eu quero um bebê, e quero agora”, desabafa Raquel Marins, 26 anos, em um vídeo postado em outubro de 2023 no TikTok. O relato dela, que se apresenta como educadora parental e terapeuta do sono, alcançou mais de 100 mil pessoas e fez com que outras mulheres se identificassem. “Cheguei a ponto de chorar em lugares públicos ao lembrar que eu não poderia ter um [bebê]”, escreveu uma.

O vídeo com o título de “Baby fever é um negócio real?” gerou outros 20 conteúdos a respeito do assunto, com atualizações de como Raquel se sentia com o decorrer das semanas. “A baby fever não me deixa pensar em outras coisas. Nunca mais dormir? Estou dentro. Ter alguém dependente de mim por muitos anos? Ai, que demais. Parir uma criança? Nota 10. É isso que a baby fever está fazendo comigo. Eu coloco a mão na barriga, e não estou grávida e nem vou ficar. A minha racionalidade consegue me mostrar que essa não é a hora”, diz Raquel em um deles.

Os motivos que barram a maternidade dessas mulheres vão desde questões financeiras até não ter encontrado um parceiro que considerem o ideal. “Por que não estou em uma melhor condição financeira? Por que eu não poderia estar mais estável na vida?”, questiona Raquel. “Estou como você. Cheguei a chorar esses dias porque nem namorado eu tenho”, disse uma anônima, nos comentários.

“Tenho 18 anos e estou assim, sei que não posso ter, mas choro todas as vezes que desce pra mim porque não estou grávida”, escreveu outra. A obsessão pela gravidez também faz com que muitas consumam pensando em seus desejos. “Agora eu entro na C&A, vejo uns vestidos de malha e fico: ‘Nossa, vai ficar muito bom quando eu estiver grávida. Será que já compro?’”, questiona Raquel.

No TikTok, são mais de 1 milhão de impressões para a hashtag #babyfever, onde é possível encontrar não apenas depoimentos, como vídeos de bebês nos mais diversos contextos. Trata-se de um biblioteca de imagens em uma verdadeira ode ao universo dos pequenos. Segundo a psicanalista Ana Laura Gaio, especializada em atendimento a gestantes, a baby fever é uma expressão que os norte-americanos usam para definir o sentimento obcecado pela ideia de ter um bebê. “É um excesso de pensamento em relação à maternidade.”

A Geração Z é conhecida também como a Geração NoMo, sigla em inglês de “No Mothers” ou Não Mães, na tradução em português. Desde 1960, o Brasil registra uma queda significativa na taxa de fecundidade. Antes, gerar seis filhos era uma média nacional. Atualmente, os números indicam menos de dois filhos por mulher, de acordo com dados do IBGE de 2023.

Vera Iaconelli, psicanalista e autora dos livros Criar Filhos no Século XXI (Contexto, 128 págs.; R$ 23,90) e Manifesto Antimaternalista: Psicanálise e Políticas da Reprodução (Zahar, 256 págs.; R$ 46,15), conta que a baby fever é um fenômeno muito visto na clínica. “Desde a infância, a maternidade é algo imposto para a mulher. Os homens podem ser pais até os 80 anos, mas as mulheres não podem ser mães a partir de uma certa idade.

Não sem o risco de não conseguirem engravidar ou de ser muito caro. Então, começa a surgir uma urgência. Claro que também existe o desejo humano de ter uma descendência, mas esse desejo nunca está solto, ele é sempre atravessado pela época e cultura. Nos anos 1950, as mulheres se casavam e já queriam engravidar. Em sociedades tradicionais, isso ainda existe. Hoje, as mulheres estão mais angustiadas à medida que elas não têm tanta garantia do casamento, do companheiro, de ter alguém com quem ter esse filho. Não é mais um caminho tão natural.”

Se a reflexão em torno do que é ser mãe no século XXI fez com que as mulheres questionassem a maternidade compulsória, a baby fever vem com uma corrente contrária. “Em uma sociedade heterogênea, é normal que encontremos todos os tipos de movimentos. Eu diria que, até os anos 1960, a baby fever era a regra.

As mulheres queriam engravidar como se isso justificasse a própria existência. Já agora, entendemos que nem sempre é vantajoso ser mãe nas condições em que somos colocadas. Mas isso não faz com que outras mulheres não continuem se identificando com esse desejo. Essas correntes que vão contra a maré são sempre válidas, as pessoas precisam bancar as suas vontades, nem todas precisam ir com o cardume”, comenta Iaconelli.

Não há absolutamente nada de errado em sonhar com a maternidade e ter esse como um dos seus objetivos na vida. A única preocupação com a baby fever está no imediatismo e na obsessão pelo tema, quando a pessoa acometida pela “febre” começa a patologizar o comportamento. “Se torna preocupante quando não existe uma reflexão acerca do que está acontecendo.

Além disso, é preciso entender que a maternidade tem suas frustrações e isso deve ser levado em conta. A maternidade é uma atividade a fundo perdido, no sentido de que você não cria um filho para você, mas para o mundo”, observa Iaconelli.

Até o momento, não existem estudos que mostram quanto tempo pode durar uma baby fever – o comportamento tampouco é estudado pela ciência. No caso de Raquel, ela relata que a questão durou meses e se abrandou aos poucos. “Foram quatro meses de loucura, não estava conseguindo viver; agora diminuiu. Ainda quero ser mãe, mais do que tudo nessa vida. Seria mãe agora, se pudesse, mas a urgência deu uma aliviada. Não estou sofrendo. Antes, eu estava em sofrimento.”

É por esse sofrimento que se dá a importância do acolhimento de mulheres que estão passando pela baby fever. “Temos que ouvir a história dessas pessoas sem julgamento, apontamentos ou acusações. Uma pessoa que entra na baby fever pode ficar muito ansiosa, gerando ainda mais pensamentos imediatistas e hiperfoco no tema”, diz Gaio. Todo esse apoio vem também da união de mulheres que passam pelo mesmo.

Ao se reunirem nas redes, criam um espaço de pertencimento. “O bom de se criar um movimento e dar um nome a ele, é a troca, encontrar espaços de pertencimento e entender que cada sujeito vive a experiência de maneira única. Em contrapartida, é necessário cuidado para que a pessoa não se torne um sintoma, deixando de ser um sujeito”, conclui Vera Iaconelli.

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