Tamaris Nascimento teve um início de vida complicado. Foi renegada pela sua família por ser lésbica, sofria bullying e encontrou nas ruas uma fuga do que vivia. Após anos nessa situação e com um vício em crack, ela decidiu que iria mudar a sua realidade no dia em que a filha mais velha completou 15 anos. Desde então, se apaixonou pela cozinha e conta a Marie Claire que uma receita de coxinha mudou sua vida
“Meu nome é Tamaris Nascimento e tenho 39 anos. Mas, desses anos todos, costumo dizer que 22 deles foram páginas em branco. Desde pequeninha lembro que minha vida não foi fácil. Minha mãe não teve condições de me criar e me abandonou. Meu pai também não me criou, pois tinha problemas com drogas e foi assassinado.
Não me sentia bem na minha própria casa, pois meus pais não me aceitavam pelo fato de eu ser lésbica. Na escola, era pior ainda: sofria bullying muito forte das outras crianças. Posso dizer que não tinha muitas perspectivas. Eu era uma mulher negra, periférica, LGBTQIAP+, que se sentia sozinha no mundo.
A rua era o lugar onde me sentia pertencente, lá não era julgada e pelo menos era acolhida por ‘amigos’. Com 14 anos, também comecei a usar drogas. Começou com maconhas em rolês, mas foram me oferecendo mais e mais. Cocaína, crack misturado com maconha, tudo que você possa imaginar.
As drogas traziam uma espécie de conforto que não senti em lugar nenhum. Larguei a escola e fiquei 3 anos nas ruas sem pisar em casa, vivia em um terreno baldio na frente da casa da minha família.
Quando não estava sob efeito das drogas, eu via a vida deles de longe. Nesses anos de rua, sofri muitas violências, abusos sexuais inclusive. Tive três filhas, Kethelyn, que hoje tem 21 anos, Melissa, de 14, e Júlia, de 11.
Não tinha condição alguma de cuidar delas, quem as criou foi minha tia Vera. Ela foi a pessoa que sempre acreditou em mim, aliás, e que me ajudou quando fui presa. Quando tinha 17 anos, fui com alguns amigos buscar drogas e fomos pegos pela polícia.
Como era a única menor de idade, eles me fizeram assumir a culpa de um crime que nunca cometi. Passei seis meses presa e minha tia fez de tudo para me tirar de lá. Foi um período horrível da minha vida. Eu consegui sair e acho que todos esperavam que nunca mais voltasse para essa vida. Queria dizer que foi essa a decisão, mas não, voltei para as ruas no momento em que saí do presídio.
Foi se passando mais um tempo e o vício só aumentava. Quando fiquei grávida da minha segunda filha, lembro que fui ao hospital dar à luz para ela, a Melissa ficou um tempo internada e eu saía para usar drogas e voltava para amamentá-la.
Fui presa novamente, dessa vez por conta de um furto para conseguir dinheiro para comprar as substâncias. Fiquei um mês encarcerada e mais uma vez saí direto para as ruas. Precisava do crack, mas quando acabava, sentia falta de casa, sentia saudade das minhas filhas. Pedia a Deus por um propósito.
Tentei parar diversas vezes, de várias formas, e não conseguia. Foi só em 9 de agosto de 2018, um dia antes do aniversário de 15 anos da Kethelyn que eu quis realmente largar e começar uma nova vida.
Não foi fácil, tive recaídas, não conseguia arrumar um emprego, não tinha um propósito de novo. Até que minha tia chegou com a ideia de eu começar a vender coxinhas. Ela me passou a receita e fui comercializar na internet. Gosto de dizer que foi isso que salvou minha vida.
O começo não foi fácil, errei muitos pedidos porque não sabia, mas decidi me profissionalizar. E fiquei boa nisso. Passava o dia vendendo os salgados e de noite ia para o curso aprender mais e mais.
Mas quando os alunos descobriram que eu já tinha sido presa e mesmo já tendo cumprido minha pena, começaram as mesmas chacotas que sofria quando era criança. Falavam que não era boa, que tudo que eu fazia era horrível e era melhor desistir logo. Foram meus professores que me incentivaram e digo com orgulho que perseverei e concluí o curso, tendo toda a minha família na formatura. Foi um dos momentos mais marcantes.
O tempo se passou e eu fiz uma entrevista em um restaurante renomado aqui de São Paulo. Fazia tudo certo, era elogiada, seguia as regras e tudo que os chefs me passavam, tentava melhorar e conseguia.
Tudo ia bem, até que o RH me chamou para assinar minha carteira e puxaram meus antecedentes criminais. No mesmo dia, fui demitida, para a surpresa de todos, até do chef, que não queria minha demissão. Nunca foi dito o real motivo para eu ter sido desligada, mas acredito que tenha sido por minha passagem pela cadeia.
Fiquei muito magoada, pensei estar fazendo tudo certo e mesmo assim, fui dispensada. Pensei muito em voltar a usar drogas nessa época, desistir do meu sonho de trabalhar com cozinha, desistir de mim, sabe? Mas tive uma luz: ‘Se as pessoas não querem me dar um emprego, vou fazer minha própria empresa’. E foi assim que surgiu o Cozinhando em Família, com a ideia de buffet a domicílio.
A família inteira começou a colaborar e eu comecei a ajudar pessoas que tinham histórias parecidas com a minha e queriam um recomeço. Estendo a mão como poucas pessoas me estenderam.
O negócio foi crescendo e a minha história apareceu em vários lugares, incluindo o Histórias Ter a Pia. O sucesso foi tanto, que tenho encomendas marcadas até outubro. A vida é boa e eu não quero perder mais nenhum dia dos 22 anos que desperdicei.
Encontrei um grande amor, a Joyce, minha companheira que me mostrou o amor de verdade e consigo dar uma vida boa para minhas filhas e minha tia, que nunca desistiram de mim. A relação de amor foi difícil de ser reconstruída, mas hoje temos uma conexão ótima.
E o mais importante de tudo: tenho muitos sonhos ainda a serem realizados. Voltei para o Ensino Médio, o EJA (Educação de Jovens e Adultos), para concluir os estudos e conseguir fazer minha sonhada faculdade de gastronomia e, quem sabe um dia, ter um restaurante? Sou muito grata por todas as coisas boas que estão acontecendo na minha vida e tudo isso é possível por causa do amor e de uma receita de coxinha.”