Termo que vem do inglês “not mothers” (mães não) define quase 40% das brasileiras; país tem hoje menor taxa de crescimento desde 1872
Menos de dois filhos por mulher é a taxa atual de fecundidade no Brasil – 1,62 sendo mais exato. Este número, que já foi de 6,3 filhos por mulher em 1960, hoje está abaixo da taxa de reposição populacional do IBGE, que é de 2,1.
Não há um motivo único para essa queda vertiginosa. Fatores econômicos e sociais têm um peso importante. Mas com o aumento da participação da mulher em diferentes atividades fora do lar, cada vez mais se fala sobre a divisão do trabalho do cuidado. Ou da falta dela.
As próprias mães cada vez mais têm se sentido confortáveis para falar sobre as dificuldades que enfrentam ao ter filhos. Que vão desde a falta de uma rede de apoio e das dificuldades para conciliar crianças e trabalho, levando à exaustão extrema do famoso “ter que dar conta de tudo”.
“A gente tem que ser mãe e mulher, quase sair da maternidade já usando cílios postiços, a unha feita, usando a roupa da moda, o corpo perfeito, andando de salto. A gente sempre tem uma cobrança. E isso vai contribuindo para esse nosso adoecimento”, diz Érika Tonelli, cientista social e especialista em direitos das infâncias.
A psicanalista Vera Iaconelli, que acaba de lançar o livro “Manifesto Antimaternalista: Psicanálise e Políticas da Reprodução”, acredita que essa excessiva responsabilização da mulher pelo trabalho de cuidado com os filhos tem um peso significativo na decisão de não tê-los.
“Há toda uma massa de mulheres que sempre teve essa dupla jornada de cuidar de casa e ao mesmo tempo sair em busca de dinheiro. Como ela pode estar no cuidado dos filhos, que requer extrema paciência, tempo, em paz e até com a possibilidade de curtir isso, se ela está ali às voltas com o trabalho remunerado, ou a falta dele? Então, elas estão – querendo ou não – tendo cada vez menos filhos, ou simplesmente não tendo”.
Maternidade solo e solitária
“A maternidade é algo muito solitário, mesmo para as mulheres que têm um companheiro em casa”. Quem diz isso é a jornalista Cláudia Pereira, mãe solo de filhos gêmeos. Ela faz parte de um contingente de 11 milhões de mulheres que não têm com quem dividir a responsabilidade diária de educar e criar uma criança. No caso dela, duas.
“Você ter dois filhos pra sustentar da mesma idade é muito pesado financeiramente, então eu tinha uns três empregos”. Hoje seus “meninos” têm 22 anos, mas, quando ela se separou, eles não tinham um ano de idade.
Segundo Cláudia, o pai das crianças nunca fez questão de estar com os filhos. “Eu posso contar nos dedos de uma mão quantas vezes eles dormiram na casa dele”. Sobre pensão alimentícia, Cláudia fala em “contribuições esporádicas”. As dificuldades não são só financeiras.
“Se acontecia algo na escola, eu não tinha quem buscasse as crianças para mim. E mesmo quando acontecia uma coisa muito boa, eu não tinha para quem ligar. É claro que eu gostaria de compartilhar isso com o pai. Eu gostaria que ele participasse, e que quando acontecesse algo bom ou algo ruim, que eu pudesse contar com ele”.
Quando a ausência é abandono
Dados do Portal Transparência Brasil mostram que do início do ano até agora quase 140 mil crianças foram registradas sem o nome do pai na certidão de nascimento. Uma média de quase 500 por dia. A situação se agrava quando se trata de crianças com deficiência.
Uma pesquisa do Instituto Mano Down, ONG que atua com Síndrome de Down, mostrou que mais de 70% dos pais abandonam os filhos com deficiência intelectual antes que a criança complete cinco anos.
Na AACD, que é referência no atendimento à criança com deficiência física, a percepção é a mesma.
“Mais de 90% (dos acompanhantes das crianças) são a figura materna. Não tenho o número exato, mas se você for no setor infantil, você vai ver que a maioria das pessoas que estão lá acompanhando as crianças são do sexo feminino: mães, avós, tias, madrinhas… a gente tem muita mãe solo”, diz Alice Conceição Rosa Ramos, médica fisiatra e Superintendente de Práticas Assistenciais da AACD.
A história de Victor Augusto Pinto Gomes é uma exceção ao que parece ser a regra. Ele se descobriu pai de Victorya, de 3 anos, de repente. Ela nasceu prematura extrema, com 23 semanas de gestação, e precisou de um longo período de internação.
Victor só soube da existência de Victorya depois que a mãe de Victorya deu à luz e não retornou mais ao hospital. “Quando ela ia sair que eu fiquei sabendo que minha vida ia mudar”, conta. “Ela deixou o telefone do meu filho e nós ficamos sabendo que havia essa criança no dia da alta dela”, diz Lindinalva José Pinto, avó de Victorya.
“As pessoas falam: ‘Nossa, mas como você vai conseguir cuidar da sua filha sozinho?’. E eu digo: ‘Ué, como uma mãe consegue’. É obrigação de pai cuidar do filho, não é abandonar”, diz ele.
Na época em que se descobriu pai, Victor tinha um trabalho regular. “A empresa me deu o período de licença-maternidade e, quando voltei, uns dois meses depois, fui mandado embora. Hoje não trabalho registrado, mas faço bicos. Porque não é todo serviço que aceita que você vai ficar um período fora para ficar com seu filho”.
Alice, da AACD, diz que é muito comum que os cuidadores tenham que deixar seus empregos ou trabalhem de maneira informal, para conseguirem acompanhar o tratamento ou as necessidades específicas da criança com deficiência. Isso pode acabar precarizando ainda mais a situação dessas famílias, por causa da insegurança financeira.
Mercado de trabalho
Esse fenômeno, contudo, não atinge apenas as chamadas mães atípicas. Pesquisas que acompanham o mundo corporativo revelam que hoje ainda cerca de 50% das mulheres são demitidas quando retornam da licença-maternidade. Mas os avanços estão acontecendo, ainda que não tão rápido quanto as mães gostariam.
O Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, estabeleceu algumas diretrizes para melhorar o cenário, como estender a licença-maternidade de 120 para 180 dias, e a licença-paternidade de 5 para 20 dias para as empresas que aderissem ao Programa Empresa Cidadã.
“Mas vinte dias não significam nada. E quando a gente pensa na Primeira Infância, nos mil dias, na primeiríssima infância, é tão relevante ter a família presente, tem impactos tão grandes na vida das crianças, na sociedade, no dinheiro mesmo, em saúde, que seria um investimento muito importante que a sociedade faria”, diz Camila Antunes, da consultoria Filhos no Currículo.
Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que trabalha com a Primeira Infância, acredita que o Marco Legal acabou sendo uma referência para que as empresas pudessem fazer mais.
“A gente viu várias empresas que começaram a dar dois, três meses. E teve empresa que equiparou aos seis meses de licença. Mas a gente está falando de um bom exemplo, dois, dez, não estamos falando aqui de um número tão significativo de empresas. E são empresas grades. Quando a gente vai para o universo das pequenas e médias, isso é muito pouco tratado”, afirma.
A psicanalista Elisama Santos, especialista em saúde mental e que dá muitas palestras em empresas, acredita que estamos avançando a passos muito lentos.
“O mundo corporativo ainda é feito por homens e para homens. Então, tem empresa que dá a licença maternidade maior, mas quantas mulheres elas contratam? Quantas abrem creches ao redor? Quantas dessas empresas flexibilizam o horário de trabalho para que a mulher consiga ter um vínculo maior com essa criança?”, diz.
Ainda há uma questão que acaba sendo uma barreira na implementação de políticas corporativas. “De nada adianta se não tiver uma cultura e um ambiente favorável pra colocar essa política corporativa em prática”, afirma Mariana Luz.
“O que a gente defende é que o pai possa se sentir confortável para ir em uma apresentação de flauta, e dizer que não pode ir nessa reunião porque a apresentação é muito importante. Ou dizer: ‘Eu preciso pegar o meu filho na creche que fecha às cinco, e eu trabalho depois em casa’. Essa lógica toda, ela faz parte de um ambiente cultural”.
Para Elisama, ainda é muito comum o olhar de que a maternidade tira talentos e tempo da mulher.
“Eu sou uma defensora ferrenha de que nós nos tornamos profissionais melhores após a maternidade. O quanto a gente desenvolve de gestão de risco, gestão de crise. O quanto a gente consegue funcionar sob pressão depois de ter um filho, o quanto o nosso raciocínio fica rápido, o quanto nossa concentração muda. Nossa capacidade de escuta, de empatia, de ler os sinais não verbais no outro depois de ter um filho? É gigantesca. Mas o mercado de trabalho continua fingindo que a maternidade só nos diminui”.
A culpa não é da mãe
Quem nunca ouviu dizer que quando nasce uma mãe, nasce uma culpa? “Isso é mentira, quando nasce uma mãe, nasce uma culpada. E essa culpa não é por ela, é a sociedade que põe nela”, diz Elisama Santos.
“A gente tem de transformar essa leitura de que a culpa é da mãe na seguinte questão: a responsabilidade é das pessoas que cuidam. Do Estado, dos familiares, da sociedade como um todo”, diz a psicanalista Vera Iaconelli.
As especialistas alertam para a tese de que a criança é um problema de quem tem e como isso leva a um isolamento de quem cuida.
“Trata-se da falta de prestígio, de como (as mães) são isoladas socialmente, a questão emocional de vir a ser mãe e até pai hoje em dia. As pessoas estão falando: ‘Obrigado, mas eu quero ter uma carreira, uma vida, liberdade, poder entrar num restaurante sem que me olhem torto com meu filho, pois as crianças choram”, diz Vera.
Essa intolerância com quem tem filhos hoje tem até nome. O movimento “child free”, que surgiu nos anos 1970 e defendia apenas o direito de uma vida sem filhos, agora é sinônimo de pessoas que defendem restrições de acesso a crianças em diferentes locais de convívio social. O motivo não é preservar a infância, mas, sim, a paz de quem frequenta esses lugares.
“A gente precisa falar da criança como uma pessoa: alguém que tem direitos na vida social. A criança tem direito à cidade tanto quanto o adulto. A criança tem direito ao espaço educativo dos museus, a criança tem o direito de viajar”, afirma Juliana Prates, que estuda a psicologia do desenvolvimento e sociologia da infância.
“A gente precisa, sim, viver com as crianças que tão fazendo mais barulho. As pessoas hoje reclamam do barulho que as crianças fazem no parque infantil! Então a gente tá falando de uma grande intolerância e desconhecimento sobre esse sujeito”, afirma Juliana.
Vera Iaconelli cita um provérbio africano famoso que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança. “Mas aí inverto isso: uma aldeia precisa de muitas crianças, para que a própria aldeia exista. Não se trata apenas de cuidar das crianças, mas de quem vai nos render?”.
Para a psicanalista, as condições que a sociedade ainda hoje impõe majoritariamente às mães pode nos levar a um déficit demográfico cada vez maior. É o que que ela chama de “maternidade em colapso”. “Criança dá trabalho, essa é a definição da criança, para as pessoas que tiveram a coragem de tê-las. Se não assumimos (esse cuidado) enquanto sociedade, estamos fadados ao fracasso retumbante.