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‘Ele pegou todo dinheiro da minha aposentadoria’: como a violência doméstica afeta a vida de mulheres com deficiência

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Mulheres com deficiência raramente são incluídas no debate sobre violência doméstica, mas não deixam de ser vítimas – e têm a autoestima ainda mais afetada por conta do capacitismo. Por mais que exista legislação que as protejam e projetos de lei que visam ampliar a acessibilidade na hora da denúncia, os aparatos públicos se mostram ainda mais ineficientes para elas

 

Há mais de 20 anos, a vida de Lúcia*, 48 anos, não pertence a ela mesma — o que pode fazer, com quem pode conviver e os lugares para onde pode ir são fatores determinados pelo marido. “Mulher que casar comigo tem que parar de trabalhar, ainda mais em uma empresa cheia de homens”, ela ouviu da boca dele antes de se casarem, o que a fez abrir mão de uma promissora carreira no ramo do comércio exterior. Quando começaram a morar juntos, o comportamento de Ícaro** se tornou ainda mais opressivo: ele passou a impedi-la de sair com amigas e que a casa fosse frequentada pelos familiares – incluindo os pais de Lúcia.

O decorrer das últimas duas décadas, ela relata, foram marcados por xingamentos diários, além de ameaças, e violências psicológicas. Até hoje, o único lugar que pode frequentar é a igreja; e sempre na companhia dele, que chegou a se converter para rastreá-la ainda mais de perto. “Se saio para levar minha filha de cinco anos para tomar um sorvete, sou chamada de vagabunda”, conta. Lúcia pensou que, há quatro anos, esse ciclo de violências poderia ser amenizado ao se tornar uma pessoa com deficiência (PcD). Não foi o que aconteceu.

Ela foi diagnosticada com uma doença degenerativa rara, em que a medula espinhal comprime seu cérebro e impacta os movimentos do corpo. É uma condição neurológica que não tem cura, e pode deixá-la tetraplégica a longo prazo – o movimento das pernas já foi comprometido.

“Ele jamais imaginou e não queria do lado dele uma deficiente. Para ele, eu já era uma mulher imprestável. Depois, me tornei um dejeto”, diz Lúcia. “Louca”, “doente mental”, “burra”, “lixo” e “drogada” – por conta dos fortes remédios que ela é obrigada a tomar para controlar a doença e tirar a dor – são alguns dos nomes usados por Ícaro para se referir a sua mulher.

“Todo dia escuto que sou feia e inútil. De tanto ouvir, chega uma hora que você acredita. Sua autoestima cai de tal jeito que você pensa que é verdade.” Devido a rotina que vive sob constante estresse causado pelas violências, ela chegou a ter dois Acidentes Vascular Cerebral (AVC). “Me sinto um lixo”, desabafa enquanto chora ao telefone.

Mulheres com deficiência e violência doméstica: uma relação invisível

As mulheres com deficiência raramente são incluídas no debate sobre violência doméstica e familiar, mas isso está longe de significar que estão vacinadas deste mal social.

Pelo contrário. O Atlas da Violência 2023, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aponta que pessoas com deficiência sofrem mais violência doméstica e familiar do que pessoas sem deficiência. E a violência doméstica é o principal tipo de violência interpessoal direcionada a PcDs.

Segundo microdados de 2021 do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan/MS), analisados pelo Atlas, elas representam 72% do total de notificações de violência doméstica; sendo que as mulheres com deficiência física equivalem a 65,4% das notificações.

“O espaço doméstico, portanto, configura-se como um ambiente de risco, especialmente para mulheres”, diz o Atlas. A pesquisa ainda enfatiza que o fato de algumas dessas mulheres serem dependentes de seus agressores para cuidado e assistência significa uma das barreiras que as impedem de buscar ajuda. Somado a isso, também as afasta de romper o ciclo de violência o medo de retaliações e outras consequências negativas.

Se libertar de um relacionamento abusivo não é fácil para nenhuma mulher. Mas a psicóloga e sexóloga Priscilla Souza afirma que há outros agravos quando a vítima é uma mulher com deficiência. Isso porque o capacitismo – ou seja, o preconceito e menosprezo contra pessoas com deficiências – mina ainda mais a autoestima, a autonomia e o que são consideradas as possibilidades de afeto para essas pessoas.

“Uma mulher com deficiência já parte para um relacionamento, muitas vezes, com a impressão de que não é completa e, por isso, deve ceder ao parceiro, mesmo quando há violência”, explica. “O corpo de uma pessoa com deficiência não é visto como digno de desejo e afeto. Então, a pessoa vai ficando como se aquela realidade fosse a única possível para ela.”

Entram nesta equação os papeis sociais de gênero: “Como a sociedade cobra um papel de cuidadora das mulheres, ela já entra num relacionamento tendo de ser cuidada. Então o homem que aceita o papel de cuidador vira um Deus, o que a faz se sentir obrigada a sustentar a relação abusiva.”

Para além dos próprios tormentos internos, a psicóloga enfatiza que o julgamento por parte de pessoas próximas da vítima são ainda mais intensos.

“As pessoas com deficiência são frequentemente tolhidas de suas autonomias e são constantemente descredibilizadas e infantilizadas. Então, quando denunciam violência, apontam o dedo no nariz delas e dizem: ‘Eu te avisei que isso não ia dar certo’.”

‘Ele pegou todo dinheiro da minha aposentadoria’

Depois do diagnóstico, as violências psicológicas e morais que Lúcia já vivia se somaram à violência patrimonial. “Vi o caso da Ana Hickmann e, enquanto ela falava sobre o que o ex-marido fez com a empresa dela, percebi que estava vivendo algo parecido.”

Por sua condição, ela tinha direito de receber uma aposentadoria de pouco mais de R$ 3 mil, mais os anos de recessão em que ficou sem trabalhar devido à doença. Mas ela diz que esse é um dinheiro no qual ela nunca pôs as mãos.

“Ele pegou todo meu dinheiro, nunca vi um tostão. Disse que era para administrar porque eu era muito burra para fazer isso, porque não tenho capacidade. Se hoje você me perguntar, eu não tenho R$ 20 no banco”, pontua. R$ 200 é a quantia que Ícaro dá para Lúcia todo mês, do próprio dinheiro dela.

Vinda de uma família abastada, Lúcia descobriu a morte do pai em 2021, depois de ter feito a segunda cirurgia que a ajudou a ganhar tempo de vida devido ao crescimento da medula até seu cérebro. Ele deixou uma herança de R$ 200 mil.

“Como ele tinha acesso a minha conta bancária, transferiu tudo para a conta dele. Não sei o que ele fez com o dinheiro. Quando ia contar para as pessoas, ouvia que ele me amava, queria crescer junto e era economista; que ele sabia o que estava fazendo.”

Lúcia afirma que Ícaro nunca partiu, de fato, para a violência física, mas que é de praxe que ele quebre objetos e soque paredes próximas de onde ele está como uma justificativa de que “era isso que ela despertava nele”. A relação dele com Lúcia e a filha se tornou cada vez mais distante e fria. “Ele praticamente a ignora e faz de tudo para me afetar por meio dela. Diz, por exemplo, que se ela não fizer a lição de casa, eu lidaria com as consequências”, afirma.

Os olhares vigilantes do marido – e da mãe dele, que tem a chave da casa e entra e sai quando quer – se certificam de que a mulher continue dentro de casa o tempo todo e evite contato físico com outras pessoas, como amigas da igreja e vizinhas preocupadas.

“Uma vez disse que faria um curso de inglês e ele disse que eu não ia aprender, por ser burra. Ele se matriculou também, acho que para me policiar. Acabei desistindo.”

Nos últimos meses, ela vem sentindo que o marido tem ficado cada vez mais agressivo. Diz que, recentemente, tentou bater nela – violência que foi gravada em áudio pela filha de cinco anos.

Além disso, ela suspeita que o dinheiro de sua herança esteja perto de chegar ao fim. “Ele me disse que vai me expulsar de casa, que quer o divórcio. Na igreja, conta para todo mundo que minha doença é psiquiátrica e que estou ficando louca. O plano dele é interceder nos cuidados com a minha filha e me internar num manicômio.”

Como a lei protege mulheres com deficiência vítimas de violência doméstica

A Lei Maria da Penha prevê pena de três meses a três anos de prisão por violência física, pena que pode ser agravada em um terço se o crime for cometido contra uma mulher com deficiência. É o que explica a advogada e ex-Promotora de Justiça Gabriela Manssur, idealizadora do projeto Justiceiras e fundadora do Instituto Justiça de Saia.

Em 2019, a sanção da Lei nº 13.836 alterou a Lei Maria da Penha e tornou obrigatório que policiais registrem no boletim de ocorrência se a vítima é PcD. Também deve informar se a violência resultou em uma deficiência – como foi o caso da própria ativista Maria da Penha, que nomeia a lei e ficou tetraplégica após levar um tiro de seu agressor – ou agravou uma condição preexistente.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº13.146/15) também garante, no Artigo 5º, a proteção “de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante”; considerando como grupos vulneráevis “a criança, o adolescente, a mulher e o idoso com deficiência”.

No Congresso Nacional, Projeto de Lei nº 4.343/20 busca dar mais destaque à violência contra mulheres com deficiência ao incluí-las nominalmente no rol exemplificativo da lei. E no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 3.728/21 quer garantir acessibilidade e atendimento especializado, com possibilidade de tradução em Libras, comunicação por braile ou uso de tecnologias assistivas no atendimento policial e pericial. Mas a tramitação dos dois projetos é morosa.

Se na configuração atual os aparatos públicos de amparo a vítimas de violência em geral se mostram insuficientes, quem dirá para uma mulher com deficiência. A psicóloga Priscilla Souza ressalta que as possibilidades de revitimização, novas violências e descredibilização por parte de agentes públicos as afastam ainda mais da denúncia.

A falta de acessibilidade e de treinamento abre margem para que essas mulheres sejam ridicularizadas ou desacreditadas. “A delegacia já tem o potencial de ser um ambiente hostil. Agora imagine, por exemplo, para uma mulher que é surda e muda e terá de se expressar por gestos, sem ninguém entender o que ela está dizendo. Ou para uma mulher cadeirante, que pode ouvir piadas ao denunciar uma violência sexual”, exemplifica Souza.

Lúcia afirma que um dos motivos pelo qual ainda não quebrou o vínculo com o seu agressor é sua descrença na justiça. Ela não é a única: dados do Mapa Nacional da Violência de Gênero, projeto do Senado Federal em parceria com Instituto Avon e Gênero e Número, mostram que 60% das mulheres que vivem violência doméstica e familiar no Brasil não fazem boletim de ocorrência.

Em 2021, depois de ter o primeiro AVC por estresse devido às violências constantes, ela chegou a procurar uma delegacia e registrar um boletim de ocorrência, mas não teve sucesso.

“Quando chegou a notificação de audiência para ele, pensei que ele fosse me matar”, lembra. Isso porque ela não foi afastada da convivência do lar e, mesmo tendo denunciado, precisou continuar vivendo com Ícaro. “Acho que ele só não fez isso porque eu estava com minha filha no colo.”

Ela desistiu depois de um amigo, advogado, pedir para que ela desistisse do processo. “Me disse que, por meu marido justificar que eu estou louca, ele tentaria tirar a guarda da minha filha.”

Manssur afirma que, para que casos como esses não aconteçam, os serviços de amparo a vítimas de violência doméstica e familiar precisam ser aperfeiçoados – seja com contratação de agentes públicos e equipe multidisciplinar plenamente capacitada, seja com a abertura de mais delegacias e casas abrigo capazes de, efetivamente, ajudar essas mulheres a romperem com o ciclo de violência.

“Geralmente, as delegacias das mulheres, da pessoa com deficiência, os centros de referências e os abrigos, estão sobrecarregados para atender tantos casos violentos, que necessitam ser tratados com um olhar humano e técnico”, diz.

Esse seria só o começo. O ideal, segundo ela, seria que todo sistema policial, jurídico e de saúde se readaptasse, rompendo com estruturas capacitistas, racistas, misóginas e LGBTfóbicas; criando mais canais de denúncia e atendimento acessíveis; formando conselhos e centros integrados voltados especificamente para vítimas com deficiência; e implementando de serviço de notificação de violência contra PcDs no Sistema Único de Saúde (SUS).

Essas seriam apenas algumas ferramentas possíveis para estender a acessibilidade plena destes serviços também às mulheres com deficiência.

Em busca de um recomeço

Depois de dar o primeiro passo ao reconhecer que está em uma relacionamento perigoso, Lúcia se prepara para o próximo: pedir ajuda e, finalmente, encerrar de uma vez por todas o ciclo de violência no qual vive.

Sem os pais vivos, com parentes vivendo espalhados por outros países e impedida por seu agressor de sair de casa, ela sente ser mais difícil se livrar do medo e da vergonha de poder se abrir sobre o que vive ao longo de duas décadas.

Mas, nos últimos tempos, vizinhas, amigas e até membros importantes da comunidade religiosa que frequenta têm aparecido para estender a mão a ela. “Tenho certeza que uma vizinha já percebeu as agressões. Sem falar abertamente, me disse que, se eu precisasse de ajuda, poderia escrever a ela. Estou pensando em fazer isso.”

Enquanto a coragem cresce, ela já sonha com uma nova vida para ela e para a filha pequena. Mesmo com a aposentadoria tomada pelo marido e com a possibilidade de ser expulsa da casa em que vive, pensa em se planejar para mudar de país e viver perto de uma familiar que vive no hemisfério norte.

Voltar a trabalhar depois de 20 anos impedida de fazê-lo também é um desejo. “Eu preciso reconstruir minha vida e sair dessa pela minha filha. A minha vida está quase no fim, os médicos dizem que a expectativa é de que eu viva por mais 10 anos. Preciso fazer isso por ela”, diz.

“Sabe o que me faz perceber que tudo que meu marido diz sobre mim é mentira?”, Lúcia questiona. “Ver minha filha ir bem na escola. Sou eu quem a ajuda com a lição de casa e a estudar, e ela sempre conta que recebe muitos elogios dos professores. Tomou gosto pelos estudos. Se eu fosse mesmo burra e incapaz, isso aconteceria?”

Como denunciar violência doméstica contra mulheres com deficiência

Os casos envolvendo mulheres com deficiência podem ser denunciados pelo 190, número da Polícia Militar, ou pelo Ligue 180, a Central de Atendimento à Mulher do Governo Federal.

Também recebem denúncias de violência doméstica e familiar as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) e convencionais, a Casa da Mulher Brasileira, hospitais e UBS, a Defensoria Pública, casas abrigo e centros de referência de assistência social. Veja como fazer a denúncia nestes outros locais neste mini guia de serviços públicos que amparam mulheres vítimas de violência.

Também é possível denunciar pelo Disque Direitos Humanos, que pode ser acionado pelo Disque 100, pelo e-mail ouvidoria@mdh.gov.br, pelo site da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. Há ainda canais de denúncia no WhatsApp (pelo número (61) 99611-0100) e no Telegram (para encontrá-lo, digite “Direitoshumanosbrasil” na busca do aplicativo). Para pessoas surdas ou com deficiência auditiva, o serviço disponibiliza atendimento em Libras por videoconferência.

*O nome foi alterado para preservar a identidade da vítima.

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