A gente se sabota porque um dia nos olharam com desdém. Porque usaram um adjetivo feio ao nos descrever. Porque perdemos uma vaga, uma promoção. Porque não nos tiraram pra dançar no bailinho.
Com 3 aninhos, me fantasiei de Mulher Maravilha.
Aquela mulher perfeita, que salva a pátria toda maquiada, de cabelão solto, usando hot-pants estreladas, top sexy, cintão, laços dourados, braceletes e uma tiara que nunca sai do lugar, assim como seus peitos, assanhados, cobertos por um top que prometia com o “tomara”, mas jamais caía.
Ela virou meu refúgio em situações de ameaça como quando meus olhos grandes incomodaram Luiz*, colega de maternal, que jogou um balde de areia neles dizendo que eu parecia um sapo. Fábio preferiu me fazer escrava do seu reino em vez de princesa, me prendendo em um brinquedo do pátio durante todo o intervalo. Roland zombou do meu rabo de cavalo, dizendo que eu era um menino feio e careca.
Mas a solução era clara: virar uma super-heroína. Sendo a Mulher Maravilha, tudo ficaria bem e eu poderia comer meu sanduichinho de Salclic preocupada apenas com o requeijão escapando pelos furinhos, nada mais.
Nem pensava ser impossível pregar a paz e a justiça vestida de dominatrix pop. Talvez por isso tenha passado anos tentando estar sempre linda: para deixar de ser sapo, para merecer ser princesa e para simplesmente ser considerada a menina que de fato era.
Acontece que, pasmem, a Mulher Maravilha nunca foi uma única mulher.
O professor e psicólogo americano William Marston criou a personagem unindo os traços de sua esposa aos da amante do casal. Trajes e comportamentos não eram gratuitos: suas primeiras histórias eram repletas de submissão e provavelmente seu avião era invisível porque mulheres não precisam ser enxergadas enquanto fazem coisas importantes.
Obviamente este foi um prato cheio para culturas machistas, transformando a heroína fictícia no modelo ideal de mulher a ser seguido. Ainda hoje fazemos analogias à Mulher Maravilha como se fosse algo bom, achando que devemos superar umas às outras, dar conta de tudo e ficar lindas em hot-pants.
Somos multitarefa, mas ainda não nos candidatamos a posições se não acreditamos preencher 100% das características procuradas no candidato. Enquanto isso, homens saem à frente, preenchendo apenas 60% do descritivo.
Não costumamos nos promover. Somos vítimas do conceito de “likability” –homens e mulheres não gostam daquelas que se auto-promovem, comprovam pesquisas de 20 anos atrás e de hoje. Não queremos não ser gostadas. Culturalmente, somos criadas para cuidar, nutrir e sermos modestas, se possível de dentro do tal avião invisível.
Nos comparamos a mulheres que nos roubaram um namorado, uma amiga, a vaga dos sonhos, conquistaram um prêmio ou o corpo que achamos perfeito, em vez de olharmos para dentro e reconhecermos nossos próprios poderes. Isso só não é mais sabotagem que usar tomara-que-caia para enfrentar vilões.
A Síndrome da Impostora é a que faz a gente acreditar que nunca é boa o suficiente. E isso não é criado nas corporações, mas na menina de 3 anos.
A gente se sabota porque um dia nos olharam com desdém. Porque usaram um adjetivo feio ao nos descrever. Porque perdemos uma vaga, uma promoção. Porque não nos tiraram pra dançar no bailinho. Porque um cara nunca nos assumiu. Porque ouvimos que tirar 10 não era mais que nossa obrigação. Porque riram da gente no palco. Porque não experimentamos um cigarro com a turma descolada da escola. Porque não tivemos filhos, priorizando a carreira. Porque abandonamos a carreira para cuidar dos filhos. Porque não somos a Mulher Maravilha.
Eu conquistei muito na minha vida. Trabalho em uma das maiores empresas do mundo em NY, sou coach de executivas, militante contra etarismo, produtora de conteúdo. E ainda assim, eu continuo craque em me sabotar aqui e ali.
Tento superar minha Síndrome da Impostora mantendo uma lista de tudo o que faço, adicionando itens diariamente. Uma lista repleta de coisas simples, até banais: “cozinhei o jantar”, “minha apresentação foi elogiada”, “uma amiga disse que sou especial”. Magicamente, ao revisá-la uma vez por semana, percebo que sou muito mais maravilhosa que qualquer super-heroína jamais criada. E eu sei que você também vai sentir-se assim quando fizer a sua lista.
Em tempo: a gente já faz um ótimo trabalho de auto-sabotagem, não precisa de mão dando um empurrãozinho diante do abismo. Então como ajudar mulheres ao seu redor? Atribua ideias corretamente, dê crédito. Elogie em público e dê feedbacks construtivos em particular. Faça perguntas investigativas para entender se quando ela está usando o pronome “nós”, deveria, na verdade, estar usando “eu”. Dê os parabéns e diga que sente orgulho dessa mulher. Sejamos mais gentis umas com as outras, porque na união não há sabotagem.
* Os nomes usados no texto não foram trocados intencionalmente, já que temos que aprender a dar nomes aos bois que nos agridem
Sil Curiati acredita que deveria haver um lugar especial no inferno para mulheres que sabotam outras mulheres. Publicitária, trabalha em NY e nas horas vagas ajuda mulheres a descobrirem seus super-poderes