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Economia doméstica e cuidados menstruais: como a Reforma Tributária impacta as mulheres?

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Especialistas em direito tributário e economia mostram quais as principais mudanças que o texto aprovado semana passada pode trazer

 

A Câmara dos Deputados aprovou na sexta-feira (15) a reforma tributária, após quase três décadas de discussão do tema no Congresso Nacional.

As brasileiras hoje são duplamente penalizadas pelo sistema tributário, apontam as especialistas consultadas por Marie Claire – cenário que pode ser revertido com a aprovação da reforma e posterior regulamentação via lei complementar. Além de pagarem mais impostos proporcionalmente devido à regressividade tributária, os produtos consumidos majoritariamente pelo público feminino, como de higiene menstrual, anticoncepcionais e bens relativos ao cuidado, são mais tributados.

Enquanto anticoncepcionais e o DIU hormonal são tributados a uma alíquota de 30%, Viagra, utilizado para disfunção erétil, tem alíquota de 18%. Bombas de amamentação tem alíquota três vezes maior do que bombas de carro.

Os dados são de um levantamento inédito da advogada Luiza Machado, em dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais em abril deste ano. A reforma tributária mudará esse cenário gritante caso a legislação complementar, votada em um segundo momento, preveja esses itens.

O sistema brasileiro concentra a tributação sobre o consumo, ou seja, em bens e serviços (tributação indireta) – e não sobre a renda e ativos (tributação direta). Isso significa que o ônus tributário é proporcionalmente mais pesado para os mais pobres e, portanto, para as mulheres negras e mães solo, que se encontram na base da pirâmide social brasileira.

Por exemplo, uma mulher que ganha o benefício do Programa Bolsa Família compromete cerca de 32% da renda com impostos indiretos, como mostra estudo do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos), de junho deste ano.

A alta regressividade da tributação, no entanto, não foi pauta do texto aprovado na Câmara. A reforma trata da simplificação da tributação por meio da unificação de impostos indiretos, de modo a agilizar a declaração e a arrecadação.

Abaixo, Marie Claire selecionou os principais tópicos da reforma tributária, avanços e retrocessos às mulheres, destacados por Tathiane Piscitelli, professora de Direito Tributário da FGV, Carmela Zigoni, doutora em antropologia e assessora política do INESC, a advogada e pesquisadora Luiza Machado, e Cristina Vieceli, economista do Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas Estudos Socioeconômicos) e professora da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina).

 

Inclusão da análise de gênero nos benefícios tributários

Luiza Machado: “Pela primeira vez, houve a inclusão da igualdade de gênero como critério explícito para avaliar medidas tributárias, especificamente os benefícios tributários. Essa conquista resultou da emenda elaborada pelo Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV, protocolada pela senadora Eliziane Gama, acatada parcialmente e incluída no texto da Reforma, estabelecendo que os regimes diferenciados de tributação deverão ser avaliados a cada cinco anos de acordo com o ‘impacto (…) na promoção da igualdade entre homens e mulheres.’

Por exemplo, atualmente, existe isenção de PIS/Cofins para diversos medicamentos; no entanto, a legislação inclui o Viagra, mas não as pílulas anticoncepcionais. Devido a essa disparidade, o Viagra possui hoje uma tributação total menor que a das pílulas contraceptivas. A inclusão desse dispositivo pode evitar discriminações como essa. Diversos países ao redor do mundo também realizam essa avaliação de gênero na tributação, conforme evidenciado pelo relatório da OCDE sobre o tema de tributação e gênero. Este texto coloca o Brasil em conformidade com as melhores práticas internacionais.”

 

Produtos de higiene menstrual

Tathiane Piscitelli: “Uma conquista histórica, ainda que tardia, é a inclusão dos produtos de higiene menstrual no rol de medicamentos com redução de tributação. São produtos essenciais, de relação direta com a dignidade humana, a saúde, o acesso à educação. 1 a 4 meninas deixam de ir à escola, segundo a Unicef, por falta de absorventes.”

 

Produtos de cuidado

Luiza Machado: “Com relação aos produtos ligados à economia do cuidado, enviamos ofício à Câmara para que fossem incluídos na lista de produtos passíveis de redução de alíquota, mas o pedido não foi acatado pelo relator. Ainda há espaço para garantir essa redução de impostos para alguns desses produtos na lei complementar, visto que a PEC permite a redução de alíquota para dispositivos médicos, medicamentos e produtos de higiene pessoal. Precisamos garantir que fraldas infantis, geriátricas, bombas de amamentação, talco, pomada para assaduras e outros produtos ligados à saúde e ao trabalho de cuidado sejam listados na lei complementar a fim de beneficiar, ou, pelo menos, não sobreonerar as mulheres pelo trabalho de cuidado que elas desempenham, que já não é reconhecido e muito menos remunerado.”

 

Educação e saúde

Cristina Vieceli: “A redução de impostos prevista para os setores de educação e saúde é um ponto importante, considerando a relevância social destes setores para o bem-estar da sociedade. As mulheres são as principais responsáveis pelos trabalhos de cuidados não remunerados, e necessitam de políticas de redistribuição destes serviços. São também maioria no mercado de trabalho nesses setores, o que poderia levar a maior formalização das mulheres ocupadas e maior empregabilidade feminina. Estas políticas são ainda mais relevantes em um cenário pós-pandêmico, em que as mulheres foram mais prejudicadas pela perda de empregos e redução da taxa de participação no mercado de trabalho.”

 

Cesta básica

Carmela Zigoni: “A criação da Cesta Básica Nacional de Alimentos com alíquota zero é motivo de comemoração, e o texto já prevê a orientação de que os produtos devem atender ao marco do direito à alimentação adequada.”

Cristina Vieceli: “A criação da Cesta Básica Nacional de Alimentos é de grande importância principalmente para as famílias de baixa renda, considerando que despendem a maior parte de sua renda com estes produtos e são essenciais para a manutenção da vida. Atualmente alguns estados possuem isenções fiscais para a cesta básica, no entanto, não é a regra, muitos possuem alíquotas acima de 30%. Em estudo publicado pelo Instituto de Justiça Fiscal e Friedrich Ebert Stifund, concluímos que as mulheres, quando são chefes de família, têm um perfil de consumo diferente dos homens. Elas gastam mais em produtos como alimentação, higiene, saúde, e os homens gastam mais em aquisição de ativos e transporte. Portanto, a isenção fiscal sobre bens básicos como da cesta básica é extremamente importante para as famílias chefiadas por mulheres e é uma forma de utilizar a política tributária para reduzir as desigualdades sociais estruturais na sociedade, como de gênero, raça e de classe.”

 

Armas e munições

Luiza Machado: “No parecer jurídico que elaboramos para o Instituto Sou da Paz e para a Oxfam Brasil, demonstramos que a tributação sobre armas e munições sofrerá uma drástica redução. Algumas alterações positivas foram feitas no Senado, mas a principal delas foi derrotada no último instante no 2º turno na Câmara dos Deputados, que retirou armas e munições da lista de incidência do Imposto Seletivo (IS). Se o IS não incidir sobre armas e munições, os revólveres, por exemplo, que hoje são tributados em até 75,5%, passarão a ser tributados com a alíquota padrão de cerca de 27%.”

 

Insumos agrícolas

Tathiane Piscitelli: “Uma ampla lista de bens e serviços poderão ser beneficiados com alíquota reduzida, como os insumos agrícolas – outro agravante, já que esses bens não podem ser objeto do imposto seletivo, um tributo da União que vai substituir o IPI e tributar bens e serviços que causem externalidades negativas à saúde e ao meio ambiente. Os agrotóxicos geram externalidades negativas evidentes, seja para a saúde de quem os manipula, consome e também para o orçamento público ao impactar a saúde pública.”

 

Emergência climática

Cristina Vieceli: “Um ponto positivo da proposta é a criação do Imposto Seletivo sobre setores poluentes, que está em consonância com o que vêm sendo realizado no mundo devido às consequências das mudanças climáticas que recaem principalmente sobre a população empobrecida. Além disso, estes impostos possuem potencial de gerar maior arrecadação ao Estado, desincentivar essas atividades, e servir para investimentos em setores sustentáveis que priorizem as necessidades humanas.”

Carmela Zigoni: “O texto aprovado considera o princípio geral da defesa do meio ambiente, o que é muito positivo. Também serão tributados seletivamente produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, porém estes produtos só serão definidos em regulamentação posterior. Ainda corremos o risco de ter produtos nocivos ao meio ambiente com benefícios fiscais, como é o caso dos agrotóxicos.

Importante lembrar que, ao mesmo tempo, o Brasil tem vultosos gastos tributários para projetos energéticos como mineração e extração de combustíveis fósseis, mas com pouca transparência nos critérios e avaliação dos benefícios à sociedade.”

 

Cashback

Carmela Zigoni: “A retirada do texto dos marcadores de gênero e raça na nova política de ‘cashback’ – devolução de parte dos impostos pagos pelo contribuinte mais pobre – foi um retrocesso. As desigualdades no Brasil atingem mais a população negra e feminina, e poderia ter sido um grande avanço aprovar o texto com a especificidade necessária a uma política pública que considere a interseccionalidade. Também não estão definidos no relatório os produtos vinculados à implementação do cashback, ou seja, não sabemos como e quando será implementado.”

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