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Mulheres sofrem linchamento, mas quem questiona o pai em tragédias que envolvem filhos?

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Tragédia com bebê que caiu do 3º andar enquanto apenas irmã de 7 anos “cuidava” da casa traz luz a debate sobre responsabilidades parentais

 

Mato Grosso do Sul acordou na quarta-feira (13) com a chocante notícia de uma tragédia, um bebê de três meses em estado grave após cair da janela no terceiro andar de um residencial no Aero Rancho na noite anterior. O bebê, do sexo feminino, estava aos cuidados da irmã mais velha, de apenas sete anos, que também cuidava do irmão de três. A mãe, responsável pelas crianças, teria se ausentado por meia hora para pagar uma dívida. Ela está presa sob a acusação de abandono de incapaz e deve passar por audiência de custódia nesta quinta-feira (14). Os irmãos estão sob os cuidados do Conselho Tutelar.

O resumo da notícia, contudo, traz diversas lacunas e questionamentos: o que podemos fazer para que casos como esses não ocorram mais? Por que tantas mulheres acabam absorvendo sozinhas a responsabilidade de criar filhos? E, principalmente: onde estavam os pais dessas crianças na hora da tragédia?

Luciana Azambuja Roca, advogada especialista em Direitos das Mulheres e presidente da Comissão de Combate à Violência contra a Mulher da OAB/MS (Divulgação)

Sem políticas de amparo a famílias monoparentais – como são chamadas famílias chefiadas por apenas um genitor, no caso, uma mulher -, situações como a que abre esta reportagem serão só mais uma terça-feira. Isso porque a tendência é que sigam acontecendo, devido à estrutura cultural que reforça a sobrecarga materna. É o que defendem as especialistas.

“O que podemos extrair desta tragédia é como o abandono paterno e a situação de famílias monoparentais requerem uma política pública eficiente. Isso é evidenciado pelo altíssimo número de crianças sem pai na certidão de nascimento, e também pelo machismo cultural que naturaliza essa responsabilização e sobrecarga das mães”, aponta Luciana Azambuja Roca, advogada especialista em Direitos das Mulheres e presidente da Comissão de Combate à Violência contra a Mulher da OAB/MS.

O abandono paterno, a propósito, está inegavelmente evidenciado nas estatísticas – ao menos na forma mais clássica: a ausência de nome do pai nas certidões de nascimento. Em Mato Grosso do Sul, de janeiro de 2016 até a última quarta-feira, das 358 mil certidões de nascimento emitidas, 21,2 mil não contavam com o nome do pai – aproximadamente 6% em 8 anos. Somente em 2023, a estatística sobe para quase 7%, com 2.735 registros com pais ausentes, frente aos 39,7 mil nascimentos em solo sul-mato-grossense.

 

Políticas públicas podem evitar o repetimento de tragédias semelhantes

A advogada, que já atuou na gestão de políticas direcionadas à mulher no Governo de MS, também defende ampla discussão sobre responsabilidade. Segundo ela, porque a culpa costuma ficar concentrada na mãe, sem considerar a necessidade de amparo, a sobrecarga de trabalho e também emocional, e a divisão de responsabilidades.

“A mulher sofre um linchamento. No caso da tragédia a que estamos nos referenciando, essa mulher está presa e também já foi julgada pela sociedade. Essa mãe, especificamente, assumiu de forma exclusiva todas as responsabilidades de um lar. Mas, teve escolha? Esse tipo de situação é extremamente comum, é bastante desgastante. Elas têm dupla, tripla, às vezes, quádrupla jornada. Então, como essa responsabilidade parental é cobrada precisa ser revista. Afinal, onde estava o pai? Se o pai contribuísse, ao menos financeiramente, essa situação teria ocorrido? Não temos essa resposta, ainda”.

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Foi apurado junto ao Conselho Tutelar que o pai não registrou a criança. Agora, após a tragédia, ele teria manifestado intenção de obter a guarda da menina de três meses de vida. O pai das outras crianças custodiadas pelo Conselho Tutelar devido à prisão da mãe também teria feito o mesmo pedido, sendo orientado a buscar reconhecimento judicialmente. Enquanto isso, as crianças permanecem sob a tutela do Estado.

Nesse contexto, a advogada pontua que sem dispositivos de amparo e assistência às famílias monoparentais, basicamente, tragédias como essa seguirão a ocorrer, e cada vez mais. “Da creche ao contrato de trabalho que preveja horários flexíveis. Até à revisão da licença maternidade, que é muito curta. Isso precisa ser revisto num contexto nacional, que se reverta em mais benefícios. Precisamos, além de perseguir sobre a responsabilidade, prevenir que novos casos aconteçam, e isso acontece com políticas assistenciais”, acrescenta.

Responsabilidade parental deve ser compartilhada

Também atuante na área de políticas para a mulher, a psicóloga social Márcia Paulino também reforça que a repercussão de fatos como este tendem a responsabilizar apenas um dos atores que, legalmente, deveriam ter responsabilidade na criação de uma criança.

“Ainda vivemos em uma sociedade patriarcal e machista que coloca, quase sempre, apenas nas mulheres, a responsabilidade pelo cuidado, seja de crianças e adolescentes, de pessoas idosas ou doentes. E nem sempre – eu diria que poucas vezes – as mulheres possuem uma rede de apoio de pessoas próximas, da família extensa ou até mesmo do poder público, para dividir essa responsabilidade”, avalia Márcia Paulino.

De fato, a mãe das crianças não teria rede de apoio, já que sua família residiria na região de fronteira, segundo uma tia das crianças. Ela também relatou que a irmã enfrentava dificuldades financeiras.

A mãe também havia fixado num mural do condomínio anúncio para contratação de uma babá que cuidasse dos filhos enquanto estivesse no trabalho, em horário noturno. A primeira notícia, baseada apenas em relato policial, trouxe que a casa onde o acidente ocorreu estaria desorganizada, com louças sujas e até com fezes – um cenário comum de um lar com três crianças pequenas. Contudo, relatos dos vizinhos e de uma ex-babá também descrevem a genitora como uma mãe responsável.

“Destaco também a facilidade em que as mulheres são julgadas, em diversos contextos, sem que se busque observar os fatos de maneira mais ampla, até mesmo em situações em que elas são vítimas, vale lembrar”, pontua a psicóloga. “Para este momento, o mais urgente é que o bebê fique bem, que a criança que estava cuidando seja acolhida e confortada, pois também deve estar sofrendo muito, e que sejam buscadas e responsabilizadas todas as pessoas que deveriam ser lembradas e cobradas por sua ausência e abandono. E que tenhamos mais políticas de cuidado e corresponsabilidade, mais redes de apoio e envolvimento de toda a sociedade”, pondera Paulino.

Especialistas não defendem impunidade

Embora o compartilhamento de responsabilidades da família seja um ponto central da discussão, as especialistas ouvidas pela reportagem reforçam que não defendem impunidade da responsável. Contudo, apontam a necessidade de ampliar o debate até para prevenir as tragédias.

“O que ocorreu [abandono de incapaz] não é correto, não pode ser desconsiderado, não isentamos [a mãe] de responsabilidade. Também não é natural que uma criança de sete anos cuide de uma de três e de um bebê. Mas, a estrutura social impõe que essas vulnerabilidades aconteçam, sobretudo nos lares mais pobres”, acrescenta Azambuja à reportagem.

“Não se trata de desresponsabilizar esta mulher pelo ocorrido, trata-se de chamar a atenção para outras pessoas e instituições que também são responsáveis pelas crianças e que não aparecem no contexto. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) diz que a responsabilidade pelo cuidado e desenvolvimento de crianças e adolescentes cabe à família, à sociedade e ao poder público, em conjunto”, ressalta Márcia Paulino.

“Essa mãe deve ser responsabilizada pelo ocorrido, e já está sendo, visto que está presa. Mas, junto a ela, precisamos nos perguntar também onde estava o pai dessa criança, ou os pais dessas crianças, pode ser mais de um, pois são três crianças no contexto. São responsáveis invisibilizados, poupados e perdoados por uma sociedade fortemente marcada por padrões patriarcais. Antes de julgar e condenar uma mulher e mãe que, aliás, deve estar destroçada com o ocorrido, eu ainda buscaria saber se ela não era também a única responsável por prover as condições materiais de alimentação, moradia, dentre tantos outros, de que as crianças necessitam”, conclui a psicóloga.

Debate sobre políticas contra desigualdade de gênero nortearam redação do Enem

A criança que caiu do 3º andar na terça-feira é um fato sintomático. Um entre vários que aconteceram e seguirão a acontecer, que exemplifica em sua forma mais pesada o que tratou a redação do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) neste ano, cujo tema foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

Tema da redação do Enem 2023 provocou debate sobre sobrecarga de trabalho da mulher (Reprodução, MEC)

Com grande repercussão, a redação do Enem despertou olhar e discussões para a temática – inclusive, para as estatísticas alarmantes relacionadas à sobrecarga da mulher no trabalho de cuidado. A PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2022) traz, por exemplo, que mulheres dedicam 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, em média. Por outro lado, homens utilizam 11,7 horas.

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