Com 35 milhões de impressões, a hashtag #lazygirljob no TikTok descortina o universo das mulheres que reivindicam doses de preguiça no trabalho. A ideia é desempenhar apenas o fundamental – ou menos que isso – para serem mais donas do próprio tempo e evitar a sobre carga mental.
A rotina de trabalho de Silvia*, 26, funciona de forma peculiar. “Dou o meu mínimo de segunda a quarta. Quinta e sexta pego mais firme”, explica ela, que mora na região do ABC Paulista e trabalha com marketing em uma agência de saúde. A decisão de mitigar esforços ao longo da semana foi tomada depois de passar por empregos em que a sobrecarga era a regra; em troca de ter de fazer o trabalho até dos chefes, ganhou salários baixos e burnout.
Se para uma parte da população a postura de Silvia pode parecer radical, para outra, se tornou uma saída para se libertar de dinâmicas exaustivas que a fazem abdicar de si mesma. O TikTok se tornou uma plataforma para alavancar esse movimento: com mais de 35 milhões de impressões, a hashtag #lazygirljob (trabalho de garota preguiçosa, em português) traz relatos de mulheres que preferem ser tachadas como preguiçosas do que padecer pelo trabalho.
“Tudo que faço diariamente é copiar e colar o mesmo e-mail, atender quatro ligações e tirar pausas para ganhar um bom salário”, conta uma delas em um dos vídeos mais vistos da trend. Outra mostra que, entre uma e outra função como analista de dados – que executa de pijama e envolta em um cobertor –, faz skincare, brinca com o cachorro e até tira cochilos.
Por mais que o nome chame atenção, não tem nada a ver com preguiça. “É sobre ter noção de que o trabalho deve pagar suas contas e permitir um equilíbrio pessoal e profissional tão grande que você deveria sentir que está operando preguiçosamente.” É o que explica em um vídeo a norte-americana Gabrielle Judge, o rosto por trás do início desse movimento on-line.
Autointitulada “Chefe Antitrabalho”, Judge ensina mulheres a se comportar como lazy girls. Assim, vai contra a cúpula de coaches meritocráticos, workaholics e bilionários que encorajam o aumento de desemprego para tornar os trabalhadores “menos arrogantes” (como disse o australiano Tim Gurner, dono da Gurner Group, em um evento em setembro).
Apesar de a sobrecarga e a precarização do trabalho não serem demandas novas, o movimento ampliou a conversa entre mulheres, principalmente as da Geração Z , nascidas entre 1995 e 2010. São elas as principais adeptas. Por terem ingressado no mercado durante a pandemia, quando se experimentou o home office como nunca antes, antenderam mais facilmente que esse alinhamento é possível. “Essas mulheres querem dar um basta na glorificação do trabalho em excesso”, define a psicóloga e mentora de carreiras Tamires Teixeira.
Por mais que não conhecesse a tendência antes, Silvia entende o que o movimento reivindica. Ela soa receosa quando confidencia sua nova forma de trabalhar: a intenção não é atrasar o fluxo, sobrecarregar colegas ou fazer um trabalho malfeito. Pelo contrário, seus feedbacks são sempre positivos.
A autocobrança extrema e o pouco tempo para cuidar de si despertaram nela a vontade de romper com a lógica que preza a abdicação do CPF pelo CNPJ. “Essa história de vestir a camisa da empresa é nada a ver. Claro que preciso do dinheiro e falo de um lugar confortável: faço home office e minha demanda é tranquila. Mas, sempre que dá, me escolho em vez do trabalho. Muita gente pode até gostar de ser workaholic. Para mim é uma baboseira. Não quero mais me matar de trabalhar.”
Clube das exaustas
O fato de as mulheres serem as responsáveis por visibilizar essa demanda não surpreende Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga e professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). “Dentro da sociedade machista que vivemos, a exaustão das mulheres é um problema antigo. Elas já acumulavam trabalho com a dupla e tripla jornada.”
Para ter uma ideia, seis em cada dez brasileiras não dedicam tempo o suficiente para explorar o próprio prazer, segundo pesquisa da consultoria para equidade de gênero Think Eva, da ONG Think Olga, divulgada em setembro. No pós-pandemia, 45% foram diagnosticadas com algum transtorno mental, como diz o levantamento Esgotadas, publicado no mesmo mês pela organização.
O diagnóstico mais comum é de ansiedade. Entre os fatores que contribuem para esse diagnóstico estão a insatisfação com o trabalho e com a situação financeira, além da dificuldade em conciliar diferentes áreas da vida.
A luta contra a intensificação e precarização do trabalho dialoga diretamente com a exaustão de mulheres, segundo Bárbara Castro, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora sobre trabalho e gênero associada do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu.
“Há uma divisão sexual do trabalho, uma expectativa da disponibilidade total sobre as mulheres para o cuidado com outras pessoas e a organização do trabalho doméstico. Espera-se que tenhamos disponibilidade total para lidar com elas, emocionalmente e temporalmente.”
A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que as mulheres gastaram 9,6 horas a mais do que os homens com trabalho doméstico em 2022 – incluindo cuidados com os filhos e/ou outras pessoas.
Por mais que jogue luz sobre uma demanda histórica, as psicólogas e a pesquisadora refletem quais mudanças as lazy girls conseguiriam alcançar na prática. Além de não ser um movimento organizado – mas uma conduta individual que ganhou projeção social –, são poucas as que conseguem ter controle sobre as próprias demandas de trabalho.
“Tenho um filho autista não verbal que exige muita atenção, e muito do meu trabalho depende exclusivamente de mim. Tenho ainda a função de esposa e dona de casa. Apesar de ter uma rede de apoio, tem coisas que só eu consigo resolver”, ilustra a cirurgiã-dentista especializada em harmonização orofacial Lisney Daniele, 37, que adoraria ter mais horas ociosas. Mas não pode, mesmo com apoio e uma condição financeira favorável.
No fim do dia, quem consegue desacelerar são mulheres brancas, escolarizadas, com jornadas flexíveis e sólidas e apoio socioeconômico. Em um Brasil profundamente desigual, que atravessa um período de instabilidade econômica, as mulheres que estão na base da pirâmide – negras e racializadas, pobres e periféricas, muitas vezes mães solo ou de outros grupos com pouco acesso a direitos – não podem se dar ao luxo de serem “preguiçosas”.
“Além da renda, a escassez de tempo é uma medida de pobreza. No Brasil, são as mulheres negras que menos têm tempo”, explica Castro. Gomes de Jesus complementa que quem está na base tem menos chances de comandar o ritmo do próprio trabalho e são as mais imersas na informalidade – o que dificulta uma estabilidade necessária para reivindicar melhorias. “Trabalho é meio de sobrevivência. Ao passo em que precisa existir esse equilíbrio, estamos falando de quem precisa pagar as contas no fim do mês”, pontua Teixeira.
Se a reestruturação do trabalho é mais urgente para as mulheres, é preciso mais do que reformular as jornadas de trabalho. Além de não perder de vista direitos e outros questionamentos para a população geral – como a redistribuição de riquezas ou a garantia de renda básica a todas as pessoas –, é crucial acabar com a divisão do trabalho invisível baseada em gênero.
Um passo importante pode ser dado no país com o desenvolvimento de uma Política Nacional de Cuidados, que está em curso por um Grupo de Trabalho Interministerial do governo Lula. Políticas públicas similares já existem na França e Uruguai e, no Brasil, poderiam ser determinantes para diminuir essa desigualdade e diminuir a sobrecarga das mulheres. “A discussão sobre adoecimento de trabalho deve ser vinculada a uma agenda feminista”, diz Castro.
*O nome foi omitido para proteger a identidade da personagem