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Ministra do TSE defende ascensão de mulheres negras a postos de poder: ‘Chega de migalhas’

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Primeira mulher negra a ocupar uma cadeira em 90 anos do Tribunal Superior Eleitoral, a advogada Edilene Lôbo conta a sua trajetória até tornar-se ministra e defende a importância de ampliar a participação feminina em espaços decisórios

 

A advogada Edilene Lôbo, primeira ministra negra a ocupar uma cadeira no Tribunal Superior Eleitoral em 90 anos, é taxativa ao tratar da ascensão de mulheres a espaços de poder: “Chega de migalhas”. A mineira assumiu em agosto o posto de ministra substituta na categoria de juristas, para um mandato de dois anos com possibilidade de renovação.

“Não é um favor, não estamos reivindicando para mim ou para duas ou três. Estamos falando de emancipar um povo inteiro. Estamos falando de um projeto global de disputa pelo poder, uma engenharia de racismo e misoginia extremamente complexa. Reverter isso não é tão singelo. Significa atuar em muitos campos da vida. Temos que atacar de todos os pontos e defender as conquistas pequenas, todo mundo junto”, defende a advogada.

Antes de tornar-se ministra do TSE, Lôbo foi sócia de um escritório em Belo Horizonte especializado em direito eleitoral, com uma equipe formada majoritariamente por mulheres negras. “Hoje essas meninas de origem muito humilde como a minha tocam o escritório e atendem grandes clientes. É uma alegria imensa”, conta. Como advogada, chegou a atuar na defesa da ex-presidenta Dilma Rousseff, na campanha eleitoral ao Senado, em 2018.

Nascida em Taiobeiras, cidade do norte de Minas Gerais, é a 17a de um “exército” de 20 irmãos, como ela mesma define. Filha de um pai alfaiate e de uma mãe dona de casa, começou a trabalhar aos 13 anos, como empacotadora em um supermercado. Mas conciliou o serviço com os estudos. Uma das poucas a fazer ensino superior na família, é a única advogada e a fazer pós-graduação. Após o doutorado em direito processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, realizou uma especialização na Universidade de Sevilha e na faculdade de Direito de Vitória sobre novas tecnologias, como inteligência artificial – tema sobre o qual lançará um livro em dezembro.

“Eu sabia que precisava agarrar qualquer oportunidade que me fosse apresentada com unhas e dentes. E não foi fácil. Quando as pessoas dizem que é só se esforçar muito que a gente consegue, digo que essa é uma falácia. Tive amigas, colegas e irmãs que estudaram muito, trabalharam muito e não conseguiram ascender a um lugar como esse onde estou. Temos que trabalhar muito e talvez, se for possível, sobra alguma coisa para nós. Chega de migalhas. Temos direito a ocupar esses espaços”, argumenta.

Abaixo, os principais trechos da entrevista com Lôbo.

MARIE CLAIRE – A senhora montou um escritório de direito com uma equipe majoritariamente formada por mulheres negras. Como foi essa experiência?

EDILENE LÔBO  – Eu trabalhava com as minhas alunas, que viraram minhas sócias e amigas. Eu adorava. A gente resolvia tudo, de dor de barriga a grandes problemas da advocacia, questões existenciais. A gente reclamava juntas, comíamos juntas, sinto muita falta disso. Tinha um homem apenas. Com a minha vinda ao TSE tive que romper a sociedade, e elas foram cuidar do escritório delas. O que é outra alegria imensa, meninas negras que vieram como eu, de origem muito humilde, e hoje têm seu próprio escritório, atendem grandes clientes. As pessoas mais humildes, sem acesso, precisam de boas oportunidades. Grande parte do que falo, eu vivi. Não estou falando de um laboratório, de um lugar asséptico. Eu vejo funcionar.

MC – Queria saber da vida da senhora antes do TSE. Como foi a sua infância?

EL – Sou de Taiobeiras, uma cidade muito pobre, no extremo norte de Minas Gerais, colada no Vale do Jequitinhonha, muito próxima à divisa com a Bahia.

Minha infância não foi de grandes perspectivas. Eu sou a 17ª filha de uma família de 20 filhos. Meu pai teve sete filhos com a primeira esposa, que faleceu do coração. Ele ficou viúvo com um bebê no colo. Logo depois se casou com a minha mãe e teve 13 filhos.

Meu pai era um homem preto retinto. Minha mãe é uma mulher não negra e somos uma família completamente mesclada. Não é uma família, mas um exército. Havia pouquíssimas possibilidades de trabalho, de aspirar, de sonhar. As meninas do meu tempo poderiam no máximo trabalhar numa loja, ser empregada doméstica ou babá e receber muito menos do que um salário mínimo.

Na cidade vizinha tinha uma escola agrícola, que formava pessoas para uma atividade muito importante: os técnicos agrícolas. Só tinha meninos e não me recordo de ver meninos negros nessa escola.

Vivi ali até os 11 anos de idade, até que foi ficando impossível estudar. Minha mãe então disse que a gente precisaria partir, e fui para a região metropolitana de Belo Horizonte com mais três irmãos. Depois o resto da família veio junto. Fomos para Betim para trabalhar e estudar – se fosse possível.

Cheguei depois do início das matrículas das crianças e dos adolescentes das escolas públicas, então tive que ir para uma escola privada. Alguém conseguiu uma bolsa, não me lembro quem. Ouvia sempre que precisava trabalhar, era o único jeito de sobreviver. Com 13 anos, fui ser empacotadora de supermercado e já tinha carteira registrada. Depois fui trabalhar numa loja de móveis.

Minha família já tinha vários irmãos e irmãs, também uma sobrinha recém-nascida.

Eu sabia que precisava agarrar qualquer oportunidade que me fosse apresentada com unhas e dentes. E não foi fácil. Quando as pessoas dizem que é só se esforçar muito que a gente consegue, digo que essa é uma falácia. Tive amigas, colegas e irmãs que estudaram muito, trabalharam muito e não conseguiram ascender a um lugar como esse onde estou. Temos que trabalhar muito e talvez, se for possível, sobra alguma coisa para nós. Chega de migalhas. Temos direito a ocupar esses espaços.

MC – E como o direito aparece na sua vida?

EL – Quando era adolescente, no movimento estudantil, secundarista, participei ativamente dos comitês pró constituinte. O Brasil inteiro debateu os temas mais variados, discutia com os meus colegas estudantes, com trabalhadores.

Começo a minha participação no mundo da política nesse período de grande efervescência do final da ditadura militar, reabertura democrática e nessa anti-sala da Constituição da República. A experiência me fez gostar do diálogo em público, me fez discutir direitos e percebi que a grande possibilidade de ampliar a defesa dos direitos das pessoas seria cursar direito.

Fui estudar à noite, na Universidade de Itaúna, em Minas. Fui muito acolhida nessa faculdade, onde depois me tornei professora. Meu reitor, que também era meu professor, me deu uma bolsa para o início do meu curso. Também me ajudava a pagar a passagem. As pessoas notavam que eu tinha muita vontade e que eu era muito capaz. Dizia para elas: eu peço uma oportunidade.

MC – Tinha algum advogado na família?

EL – Não, imagina. Minha mãe sempre trabalhou muitíssimo em casa. Em casa tínhamos uma padaria artesanal e uma parte virou uma pensão. O meu pai era alfaiate. Sou a única advogada da minha família, a única professora de direito. A única com pós-graduação. Na minha família tem muitos trabalhadores: pedreiros, motoristas, donas de casa.

Quando uma de nós chega num lugar, tem que dar a mão e puxar outras. E quando alguma de nós chega, temos que lutar para ela permanecer. Somos mais observadas, mais criticadas. Quando erramos, somos mais recriminadas e censuradas. É como se estivéssemos num lugar guardado de insignificância. Se a gente chega em algum ponto, essa estrutura de exclusão racista e machista está montada para dizer: “Vai ficar por um tempo, mas daqui a pouco vai desaparecer. Daqui a pouco vai aprontar alguma coisa e vai sumir desse lugar”.

Como ministra do TSE, participo de um momento tão importante da vida nacional, com a expectativa de que não retrocedamos do ponto de vista civilizatório. Temos que resistir, lutar, colocar escoras para que o caminhar lento não retroceda, na evolução das mulheres negras ocupando espaços decisórios.

MC – O Brasil vive sob risco de retrocesso civilizatório?

EL –  Vivemos muito pouco tempo sob regimes democráticos. Este último lapso temporal, desde a Constituição de 88, fez 35 anos. Observando esse período de movimentações políticas variadas, dois impeachment, a primeira mulher eleita presidenta, os atos de 8 de janeiro, claro que há risco de retrocesso.

Não é só no Brasil, né? Estamos vendo por vezes o processo democrático dar uma marcha para trás. É um risco que correm as sociedades modernas.

É preciso um investimento forte na participação do povo na gestão dos negócios do Estado. Por isso mulheres nos espaços decisórios tem que ser uma bandeira de toda a sociedade. É para proteger a própria sociedade do abuso, do excesso. Sem vigilância, sem investimento na educação política das pessoas, corremos risco de retroceder.

MC – De que forma a maior participação de mulheres nos espaços decisórios evita esses retrocessos?

EL – Não sei se podemos afirmar que tão somente a presença de mulheres evitaria o risco. Mas, quando observarmos essa grande maioria de mulheres negras representada nos espaços decisórios, haverá a sensação de legitimidade das decisões tomadas por esses vários órgãos estatais e da iniciativa privada.

Essa sensação pode gerar uma série de outros sentimentos, mas um deles é de se ver representado. Isso é importante: ver sua cara naquele lugar.

Além disso, há um ganho de qualidade. Nós já sabemos, por números e pela própria realidade brasileira, que, quanto mais diversa se compõe um conjunto – ou uma corte julgadora, mais probabilidades de acertar nas decisões, considerando essa conjunção de pensamento diversos. A multiplicidade tende a revelar maior acerto nas decisões dos órgãos colegiados.

MC – A nossa sociedade é estruturalmente machista, racista e classista, e portanto o Judiciário perpetua essas desigualdades. Reverter isso passa necessariamente pela ampliação da participação de mulheres negras no Judiciário?

EL – Estamos falando de estruturas construídas ao longo de séculos, tão bem engendradas que capturam as próprias pessoas discriminadas, excluídas. Há mulheres que não compreenderam ainda a extrema necessidade de falar de paridade, inclusive no Parlamento.

Não é um favor, não estamos reivindicando para mim ou para duas ou três. Estamos falando de emancipar um povo inteiro.
— Edilene Lôbo

Estamos falando de um projeto global de disputa pelo poder, uma engenharia extremamente complexa. Reverter isso não é tão singelo. Significa atuar em muitos campos da vida. Temos que atacar de todos os pontos e defender as conquistas pequenas, todo mundo junto.

Não é só no Judiciário. A Constituição estabelece que não se pode excluir a mulher do acesso ao emprego pela sua condição, pelo gênero. Então estamos também falando da iniciativa privada. Há também necessidade extrema de investir na educação deseletizada das mulheres negras. Estão fora do ensino formal, inclusive do ensino superior. Estão nos piores lugares, nos piores empregos. As mulheres negras são maioria arrasadora no maior contingente de empregadas domésticas do mundo, que é o brasileiro.

Apenas 3% das vagas dos cursos de inovação tecnológica são ocupadas por mulheres negras, segundo relatório do PretaLab. O mundo digital é o futuro e o presente da sociedade. Claro que isso tem a ver com a lógica estrutural de exclusão dessas pessoas desses espaços. Porque as mulheres negras têm plena capacidade de ocupar esses lugares e cursar as disciplinas e os cursos que elas desejarem. O sistema foi montado para que a gente ficasse na cozinha, no cuidado.

MC – Qual a sua opinião sobre a campanha por uma mulher negra no STF? Qual a urgência para que isso aconteça?

EL – Se houver uma mulher negra no Supremo, quem ganha é toda a sociedade brasileira. Me parece muito importante do ponto de vista constitucional, político, prático e administrativo.

Não posso ser simplista. O processo de nomeação de uma pessoa para o Supremo Tribunal Federal brasileiro, como é para o Supremo Tribunal Federal de grandes nações pelo mundo, é bastante complexo. Mas fico pensando como vai ser rica a oportunidade de uma mulher negra levar à Corte os seus conhecimentos, sua trajetória, sua vivência.

Temos grandes nomes com esse conhecimento e vivência do mundo prático, da realidade prática, da vida comum das pessoas negras nesse país. É preciso conhecer essa realidade. Muitas vezes as pessoas falam de fora para dentro, mas precisamos ouvir quem fala de dentro para fora, quem sabe qual é o chão frio dessa realidade.

A indição de uma mulher negra é uma medida de Justiça muito vibrante e vigorosa, principalmente às pessoas negras, de começo de reparação de cinco séculos de exclusão, discriminação, morte, extermínio, que construiu esse país.

Estou confiante que o presidente do Brasil mantenha a sua trajetória e consiga nomear uma mulher negra para o Supremo.
— Edilene Lôbo
Vai ser muito maravilhoso entrar naquela corte e ver que sim, podemos. E merecemos.

Nos tribunais brasileiros temos apenas 11% de ministras negras. Aqui no TSE pela primeira vez chega uma mulher negra em 90 anos – e ainda assim muita gente não compreende que a população negra é composta por pessoas pretas e pessoas pardas, como eu. Já ouvi expressões extremamente racistas e discriminatórias questionando que eu não era tão escura assim, logo que eu não seria uma pessoa negra.

Nos tribunais estaduais e federais intermediários, na segunda instância, temos 12,1% de desembargadoras negras. Na primeira instância, apenas 11,2% de juízas negras. E a população brasileira está composta por quase 30% de mulheres negras.

MC – Houve mais um julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no TSE esta semana. Como está o clima no tribunal? Como tem sido a sua experiência?

EL – Como em algum momento posso integrar a bancada de julgamento e vir apreciar uma dessas ações, não devo me debruçar sobre elas. Peço licença para não falar delas especificamente.

Ao tomar decisões, o TSE pode desagradar, gerar reações. Mas até agora só recebi acolhidas, abraços, aplausos, votos de estímulo. Então até aqui posso dizer que me encontro num ambiente acolhedor – e isso não significa que seja sempre assim para as mulheres, e principalmente para uma mulher como eu.

Sei que nem tudo são flores, que essa não é uma função simples. Temos os exemplos de magistradas como a ministra Cármen Lúcia e a ministra Rosa, que têm sofrido ataques. Isso não é bom para democracia brasileira, e por isso que nós temos que falar de um assunto importante que atinge mulheres em espaços de disputas políticas: a violência política de gênero.

Tenho dado cursos aqui no TSE e me dedicado muito a difundir a necessária proteção aos espaços políticos das mulheres. Significa dizer: violência política de gênero é crime. Precisam ser protegidas da epidemia da violência política de gênero. Tem uma lei brasileira que é nova para reagir a essa prática que é tão antiga, o código eleitoral brasileiro foi bastante modificado para absorver a tipificação como crime. Temos hoje um estatuto jurídico bastante definido. Passa da hora de falarmos ‘basta’.

O mote da campanha de 2024 é: não à fake news, contra a violência política de gênero e por mais mulheres na política para nós termos mais democracia nesse país.

MC – A senhora pesquisou tecnologias e inteligência artificial na pós-graduação. Quais são os maiores desafios a serem enfrentados no tema?

EL – Fiz o pós-doutorado em Sevilha, na Espanha, e numa faculdade de direito em Vitória sobre novas tecnologias e instituições de garantias. Este ano fui ministrar na universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, sobre direitos políticos, partidos políticos, democracia e milícias digitais na América Latina.

Em dezembro vou lançar um livro com uma ex-aluna, hoje uma brilhante professora, sobre direitos fundamentais e Inteligência Artificial. Exploro três temas: o machismo algorítmico, o racismo algorítmico e a aporofobia algorítmica.

Apresento alguns casos, como de quando se pesquisa em uma plataforma sobre mulheres negras, geralmente os resultados estavam ligados ao erotismo. Pessoas negras eram retratadas como um gorila.

Temos que investir na ruptura desse enviesamento do mundo digital e para isso precisamos falar de diversidade entre os desenvolvedores de tecnologia. As empresas de desenvolvimento tecnológico, do Vale do Silício (EUA) e da China basicamente, têm que se comprometer com a democracia planetária e com a diversidade no desenvolvimento tecnológico.

O algoritmo num primeiro momento acaba revelando o que é a própria sociedade, mas a tecnologia da Inteligência Artificial aprende com ela mesma, então a exponencialização do enviesamento é uma coisa alucinada. Além de combater o enviesamento na sociedade, precisamos conter um enviesamento veloz dos algoritmos.

MC – A senhora entra na questão do reconhecimento facial, usado pelo Judiciário?

EL – Sim, o reconhecimento facial para catalogar e perfilizar é um modo de ampliar o racismo. Uso o caso de uma comunidade estadunidense para explicar porque usar reconhecimento facial para formar a base de dados para prender e soltar pessoas é um dos grandes desafios da sociedade – principalmente a brasileira, com mais de 50% de pessoas negras.

No modelo estadunidense é muito comum o uso nas políticas de encarceramento e mesmo de fixação de fiança. Isso torna quase impossível a pessoa negra sair da cadeia. Como a base de dados é enviesada, o algoritmo parte do princípio de que as pessoas negras são a maioria dos presos. Logo o sistema diz que a maioria das pessoas negras é violenta, e a maioria é reincidente, então a fiança para essas pessoas ficam muito altas.

Precisamos combater essa má formação da base de dados, ter uma política de proteção aos dados pessoais e saber quais são os algoritmos desenvolvidos. Tem uma resistência grande da indústria dizendo que isso é um segredo industrial, mas não é. Assim como se faz para certificar remédios, sem revelar segredo nenhum, algoritmos têm que passar por um processo de certificação do Brasil. Precisamos de uma legislação que faça a boa regência do mundo digital.

Trato também do PL 2630, das fakenews. Apesar do nome, trata de outros temas de imensa riqueza, e faz uma reflexão a partir do modelo europeu, que considero um dos mais avançados do mundo na regulação do uso dos dados e principalmente do acesso ao mundo digital.

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