Os Emirados Árabes Unidos planejaram usar o papel como anfitrião das negociações climáticas da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2023 como uma oportunidade para fechar acordos de petróleo e gás, apurou a BBC.
Documentos vazados revelam planos para discutir acordos relacionados aos combustíveis fósseis com 15 nações — inclusive o Brasil.
O órgão da ONU responsável pela Cúpula sobre Mudanças Climáticas, a COP28, disse à BBC que espera que os anfitriões do evento atuem sem vieses ou interesses próprios.
A equipe dos Emirados Árabes não negou que planeja usar as reuniões marcadas durante a COP28 para negociações de acordos comerciais — porta-vozes do país também disseram que “as reuniões são privadas”.
Os documentos — obtidos por jornalistas independentes da organização sem fins lucrativos Center for Climate Reporting, que trabalham em conjunto com a BBC — foram preparados pela equipe dos Emirados Árabes para a COP28.
Eles serviriam como planejamento para reuniões com pelo menos 27 governos estrangeiros que estão marcadas para ocorrer antes da COP28, que começa no dia 30 de novembro.
Esses documentos incluem “pontos de discussão” e propostas.
Para uma reunião com a China, a Adnoc — a empresa petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos — diz estar “disposta a avaliar oportunidades conjuntas de GNL [gás natural liquefeito]” em Moçambique, Canadá e Austrália.
Os documentos preparatórios indicam falar a um ministro da Colômbia que a Adnoc “está pronta” para apoiar o país sul-americano no desenvolvimento de recursos no setor de combustíveis fósseis.
Existem pontos de discussão para outros 13 países, incluindo a Alemanha e o Egito.
Nesses locais, há uma sugestão para que a Adnoc trabalhe com os governos locais para também desenvolver projetos de combustíveis fósseis.
Os documentos preparatórios mostram que os Emirados Árabes também previam discussões sobre oportunidades comerciais para a empresa estatal de energia renovável do país, a Masdar, antes das reuniões com 20 países —incluindo Reino Unido, Estados Unidos, França, Alemanha, Países Baixos, Brasil, China, Arábia Saudita, Egito e Quênia.
A COP28 será mais uma rodada de negociações climáticas globais lideradas pela ONU.
Este ano, o evento é organizado pelos Emirados Árabes em Dubai e contará com a presença de 167 líderes mundiais, incluindo o Papa Francisco e o Rei Charles 3º, do Reino Unido.
Estas cúpulas são as reuniões mais importantes do mundo para discutir como enfrentar as alterações climáticas.
A esperança é que a COP28 ajude a limitar o aumento da temperatura global a um máximo de 1,5 ºC, o que o órgão de ciência climática da ONU considera crucial para evitar os piores impactos relacionados às alterações climáticas.
Mas essa meta exigirá cortes drásticos nas emissões de gases do efeito de estufa — uma redução de 43% até 2030 em relação aos níveis registrados em 2019.
Como parte dos preparativos para a conferência, a equipe dos Emirados Árabes para a COP28 organizou uma série de reuniões com governos de todo o mundo.
Esses encontros seriam liderados pelo presidente da COP28, Sultan al-Jaber. Todos os anos, o país anfitrião nomeia um representante para ser o presidente da cúpula.
Reunir-se com representantes de governos estrangeiros é uma das principais responsabilidades dos presidentes da COP.
Entre as funções do presidente, está a necessidade de encorajar os países a serem tão ambiciosos quanto possível nos esforços para reduzir as emissões dos gases do efeito estufa.
Os documentos dos Emirados Árabes vazados para a BBC foram preparados para auxiliar Sultan al-Jaber — que também é presidente da Adnoc (a gigante petrolífera estatal do país) e a Masdar (empresa estatal de energias renováveis) — nessas reuniões.
Os documentos vazados contêm um resumo dos objetivos das reuniões, incluindo informações sobre o ministro ou o funcionário que al-Jaber iria encontrar e quais as questões que ele deveria focar nos esforços dos Emirados Árabes para avançar as negociações sobre o clima.
Para mais de duas dezenas de países, os documentos também contêm pontos de discussão elaborados por representantes de Adnoc ou Masdar:
- Para Marina Silva, a ministra do Meio Ambiente do Brasil, seria solicitada uma ajuda para “garantir o alinhamento e o endosso” em relação a uma oferta da Adnoc para a compra de parte da maior empresa petroquímica da América Latina — a Braskem. No início deste mês, a Adnoc fez uma oferta de US$ 2,1 bilhões (R$ 10,3 bilhões) para adquirir uma participação importante na Braskem.
- Sobre a Alemanha, a Adnoc escreveu no relatório de preparação: “Estamos prontos para continuar o nosso fornecimento de gás natural liquefeito (GNL).”
- A Adnoc sugeriu que as nações produtoras de petróleo da Arábia Saudita e da Venezuela fossem informadas de que “não há conflito entre o desenvolvimento sustentável com o uso de recursos naturais de qualquer país e o compromisso com as alterações climáticas”.
- O presidente da COP28 foi instruído a “buscar apoio governamental” do Reino Unido para ampliar o tamanho de um parque eólico na costa do condado de Norfolk, no qual a Masdar tem participação.
A BBC teve acesso a uma troca de e-mails em que os membros da equipe da COP28 são informados de que os pontos de discussão elaborados por Adnoc e Masdar “precisam sempre ser incluídos” nos relatórios informativos.
Procurada, a equipe da COP28 negou que essa orientação tenha sido transmitida aos funcionários.
Não está claro em quantas ocasiões al-Jaber e a equipe dele de fato mencionaram esses pontos de discussão que aparecem nos relatórios durante as reuniões antes da COP28 com governos estrangeiros.
Segundo a apuração da BBC, em pelo menos uma ocasião representantes de outro país foram abordados sobre as questões que aparecem nos relatórios produzidos pelo país-sede da COP28.
No entanto, 12 nações disseram à BBC que não houve qualquer discussão sobre atividades comerciais específicas ou que não participaram de reuniões.
A tentativa de fazer negociações durante a COP28 parece ser uma violação grave dos padrões de conduta esperados de um presidente da cúpula.
Essas normas são estabelecidas pelo órgão da ONU responsável pelas negociações climáticas, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC).
O órgão afirma que o “princípio fundamental” para os presidentes da COP e as equipes deles é “a obrigação de imparcialidade”.
Para a BBC, a UNFCCC disse que “espera que os presidentes da COP atuem sem preconceitos, vieses, favoritismos, caprichos, interesses próprios, preferências ou deferências, estritamente baseados num julgamento sólido, independente e justo”.
“Espera-se também que eles garantam que as opiniões e as convicções pessoais não comprometam ou pareçam comprometer o seu papel ou funções como um representante da UNFCCC.”
Manuel Pulgar-Vidal, chefe da COP20, realizada no Peru em 2014, teme que um abalo na confiança sobre a cúpula possa se traduzir em pouco ou nenhum progresso no combate às alterações climáticas durante as negociações marcadas para Dubai.
“O presidente da COP é um líder mundial, que está tentando construir um consenso em nome do planeta”, disse ele à BBC.
“Se algum presidente da COP tentar trazer um interesse particular, [incluindo] negociações comerciais, isso poderá significar o fracasso da cúpula.”
Já o professor Michael Jacobs, da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, especialista em política climática da ONU, disse à BBC que as ações da equipe da COP28 parecem “gravemente hipócritas”.
“Na verdade, penso que é ainda pior, porque neste momento os Emirados Árabes são os guardiões de um processo das Nações Unidas que visa reduzir as emissões globais. E, no entanto, nas mesmas reuniões em que aparentemente tenta alcançar esse objetivo, o país está tentando fazer acordos paralelos que aumentarão as emissões globais de gases do efeito estufa.”
Vários dos projetos mencionados nos documentos preparatórios parecem representar novos desenvolvimentos comerciais no setor de petróleo e gás.
A Agência Internacional de Energia, um órgão que acompanha este setor, afirmou que, para manter o aumento da temperatura na meta de 1,5 ºC, não devem ser desenvolvidos novos campos de petróleo e gás daqui em diante.
Numa entrevista a jornalistas realizada no mês passado, o diretor-geral da COP28, Majid al-Suwaidi, disse que a equipe da cúpula climática dos Emirados Árabes Unidos era “totalmente independente” tanto da Adnoc quanto da Masdar.
A COP28 sempre deixou “muito clara a nossa independência” nas discussões com a UNFCCC, acrescentou ele.
Num comunicado, a equipe da COP28 declarou à BBC: “O fato de Sultan al-Jaber ocupar vários cargos junto com o seu papel como presidente designado da COP28 é de conhecimento público e algo sobre o qual temos sido transparentes desde o início.”
“Sultan al-Jaber está totalmente focado nas negociações da COP28 e na entrega de resultados climáticos ambiciosos e transformativos”, afirma o texto, que classifica como uma “distração” qualquer ideia de que o trabalho dele não esteja “focado em uma ação climática significativa”.
Para os especialistas, as evidências que aparecem nos documentos são graves. Mas, em última análise, o sucesso da liderança dos Emirados Árabes — e do próprio presidente da COP28 — nas negociações sobre o clima será julgado pelos resultados alcançados durante a cúpula.
A COP28 começa no dia 30 de novembro e deve terminar em 12 de Dezembro.