Em entrevista exclusiva, CEO global da AstraZeneca expõe os desafios da sustentabilidade do sistema de saúde e por onde caminha o futuro da medicina
Não dá para falar sobre a sustentabilidade dos sistemas de saúde sem falar de outra sustentabilidade, a ambiental – e vice-versa. É o que defende o francês Pascal Soriot, CEO global da biofarmacêutica AstraZeneca.
No comando da empresa que trouxe uma das primeiras vacinas contra a Covid-19 à população, o executivo relembra o período como uma fase de muitos aprendizados, que estão abrindo caminho inclusive a novas vacinas e terapias contra outros vírus e bactérias.
Ciente de que a prevenção de novas epidemias passa pelos cuidados com o planeta, Soriot foi um dos propulsores do programa AZ Forest, em que o laboratório financiará o plantio de milhões de mudas de árvores pelo globo – experiência que já começou no estado de São Paulo.
A ideia é auxiliar o planeta a absorver o carbono emitido pela indústria, inclusive a farmacêutica. Um movimento para reduzir as emissões também está em curso, algo que o CEO considera uma questão de saúde pública.
Preocupado com o fôlego e a resiliência dos sistemas de saúde, duramente testados na pandemia, Soriot colocou entre as prioridades da AstraZeneca apoiar estudos para entender os pontos fracos e fortes do setor em uma série de países. Os resultados para o Brasil já foram anunciados.
Entre as soluções para o cenário nacional, o líder da companhia prescreve investir mais em diagnóstico precoce. “Se você for diagnosticado precocemente, tem mais chances de ser curado. E ser curado é bom para o indivíduo, mas também para todo o sistema”, afirma.
Em entrevista exclusiva a VEJA, concedida por videoconferência, Pascal Soriot fala dos desafios atuais, indissociáveis da crise climáticas, e do que o futuro da medicina nos reserva no combate a infecções, câncer e doenças cardiovasculares.
Sabemos que a AstraZeneca foi uma das protagonistas na reação à Covid-19 ao atuar no desenvolvimento e na disponibilização de uma das vacinas contra a doença. Essa experiência foi um divisor de águas para vocês?
Nós aprendemos muito durante o período da Covid-19. Em primeiro lugar, ficamos muito felizes e orgulhosos de ter ajudado tantos países. Cientistas independentes estimam que a nossa vacina salvou 6,5 milhões de vidas pelo mundo. Nós entregamos para as pessoas cerca de 3 bilhões de doses. Acima de tudo, aprendemos bastante sobre imunizantes e sobre imunoterapias. E já estamos trabalhando em novas tecnologias que, assim esperamos, devem oferecer vacinas inovadoras e novos tratamentos não só para a Covid, mas também para outros vírus e, possivelmente, até bactérias.
O senhor tem formação como médico veterinário e cada vez mais se fala da importância de tratarmos a saúde humana, a dos animais e a do planeta como uma coisa só. Como enxerga essa intersecção?
Sim, ótima questão. Quando eu era jovem, amava matemática e física, mas também biologia. Minha mãe tentou me convencer a ser médico. Ela convenceu meus irmãos, não a mim.
Eu amava a natureza, amava especialmente cavalos, e decidi ser veterinário. Quando terminei a graduação, ainda não sabia muito o que fazer. Com o tempo, comecei a trabalhar na indústria,
mas mantive minha paixão pela natureza e a compreensão de que a natureza e a saúde humana andam de mãos dadas.
Nós não podemos viver sem o planeta. E a verdade é que fizemos grandes progressos como seres humanos nos últimos 200 anos, mas gerando um impacto negativo sobre o planeta.
Então é preciso compreender que a atual crise climática é também uma crise de saúde. A Covid matou cerca de 7 milhões de pessoas. Mas os cidadãos não percebem que as mudanças climáticas e a poluição já matam ao redor de 7 e 9 milhões de pessoas todo ano através de doenças cardiovasculares e respiratórias. Então precisamos entender que essa é também uma crise de saúde.
Na prática, como podemos mudar essa realidade?
Assim como nós precisamos fazer nossa parte como companhia, eu espero que todo mundo tenha esse mesmo compromisso de salvar o planeta. E ele começa com a redução das nossas emissões de carbono. Estamos engajados em grandes programas nesse sentido e trabalhando com outras empresas, não só do nosso setor, para tentar reduzir coletivamente as emissões na área da saúde, que geram ao redor de 5% das emissões de carbono globalmente.
Nós já estamos diminuindo nossas emissões e queremos chegar a uma redução de 95% em 2025, mobilizando também nossos fornecedores, e pretendemos zerar as emissões por volta de 2045. Em paralelo, também queremos construir maneiras de absorver o carbono que ainda estamos emitindo. E essa é a base do programa AZ Forest. Decidimos investir 400 milhões de dólares para plantar 200 milhões de árvores pelo mundo, que absorverão 30 milhões de toneladas de carbono ao longo do projeto. No Brasil, nos comprometemos a plantar 12 milhões de árvores na Mata Atlântica, junto a uma parceria com o estado de São Paulo.
Por falar em sustentabilidade… E a sustentabilidade econômica do sistema de saúde? Vocês apoiaram uma pesquisa realizada em vários países para avaliar os sistemas de saúde locais, incluindo o brasileiro. A que conclusões chegaram?
Bem, se olharmos um pouco para atrás, a Covid nos mostrou claramente que a resiliência dos sistemas de saúde é a chave. Quando os sistemas de saúde pelo mundo passaram a ficar sobrecarregados com pacientes de Covid, vimos que a vida entra em colapso, e, no final, só restava aos governos promover lockdowns para evitar que a doença se espalhasse a fim de evitar a pressão sobre os hospitais. Então, ter um bom sistema de saúde é algo crítico, e isso, eu espero, se tornou uma prioridade no pós-Covid.
No fim das contas, precisamos de um sistema que possa absorver a demanda das pessoas. Para isso, é fundamental que façamos diagnósticos mais cedo.
Um exemplo: se você tiver câncer de pulmão e for diagnosticado precocemente, pode ser curado. E, se você é curado, isso é melhor para você, mas também para o sistema, porque você não ficará um longo período hospitalizado. Se você tiver doença renal e for diagnosticado cedo, também pode ser tratado antes e não ter de depender de um centro de diálise. Então eu acredito que o diagnóstico e a interceptação precoces de doenças é crítico para o Brasil e o restante do mundo.
Para quem trabalha com ciência de ponta, como enxerga essa onda recente de negacionismo científico?
Sim, essa é uma questão que, infelizmente, não ocorre só no Brasil. O problema é que, muitas vezes, a ciência é sequestrada por interesses políticos. Mas o que precisamos ter em mente é que, no final, a raça humana enfrenta vários desafios, doenças, mudanças climáticas, entre outros, e a ciência é a única forma de encontrar soluções para eles.
Então precisamos continuar educando profissionais de saúde e pacientes sobre o valor da ciência e sobre o benefício que trazemos ao desenvolver novos produtos. A ciência é o que realmente vai nos salvar do aquecimento global, se pudermos ou se quisermos ser salvos. É o mesmo raciocínio que aplicamos às doenças.
Veja, eu tive um câncer há 25 anos. Naquela época, só havia quimioterapia disponível. Ela não era tão efetiva e cheia de efeitos colaterais. Hoje temos tantas opções, e a coisa só acelera. Então me orgulha acreditar na ciência e trabalhar pela ciência. Eu e nossos colaboradores acreditamos nisso e tentamos transmitir esse entusiasmo a outras pessoas e aos governos tanto quanto podemos.