As audiências de custódia não têm cumprido seu papel como instrumento para coibir violações de agentes do Estado e enfrentar a violência institucional em São Paulo. Avaliação é de entidades de direitos humanos que atuam na área de Justiça. O debate veio à tona após imagens divulgadas em rede social de um homem carregado por policiais militares, com mãos e pés amarrados, na capital paulista.
O desembargador Edson Tetsuzo Namba, do Tribunal Justiça de São Paulo (TJSP), manteve a prisão preventiva do rapaz no último sábado (10), após pedido de habeas corpus pela defesa. Ele manteve decisão da juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, proferida após realização da audiência de custódia em 5 de junho, na qual a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. Na ocasião, ela entendeu ainda que não houve tortura nem maus-tratos contra o suspeito.
Segundo o TJSP, a juíza não teve acesso às imagens que foram veiculadas posteriormente e se espalharam por redes sociais. No entanto, o boletim de ocorrência da prisão do rapaz já trazia a informação de que ele havia sido imobilizado com uma corda pelos policiais, conforme informações da Secretaria de Segurança Pública (SSP).
Em 2017, a organização não governamental (ONG) Conectas Direitos Humanos apresentou denúncia ao TJSP, ao Ministério Público (MP) do estado e à Defensoria Pública com base no relatório Tortura Blindada: como as Instituições do Sistema de Justiça Perpetuam a Violência nas Audiências de Custódia, produzido pela entidade.
Na ocasião, a conclusão era de que havia perpetuação da violência policial no sistema de Justiça, já que não era dado nenhum encaminhamento às denúncias de tortura e maus-tratos feitas durante as audiências de custódia ou eram encaminhamentos meramente protocolares.
Cinco anos depois da divulgação do resultado, a advogada Carolina Diniz avalia que pouco se avançou nas práticas adotadas pelo sistema de Justiça. Ela concluiu que a forma com que as instituições do sistema atuaram nesse caso recente remonta ao que acontecia em 2015, período da amostra utilizada para o relatório Tortura Blindada. Carolina Diniz é coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.
“O que acontecia em 2015, quando as audiências foram instaladas, segue acontecendo até hoje, que é um despreparo do sistema de Justiça para enfrentar a violência institucional praticada pelo Estado brasileiro”, avaliou. Ela ressalta que, se as imagens não tivessem sido amplamente divulgadas, não haveria pedido de apuração nem desdobramento sobre violações cometidas pelos agentes do Estado na ocorrência do rapaz amarrado.
Na audiência de custódia, o juiz não avalia inocência ou culpa, mas os elementos processuais sobre a prisão em flagrante, além das eventuais ocorrências de tortura e maus-tratos. Após manifestação do MP e da Defensoria – ou do advogado –, o juiz decide se o acusado terá a prisão em flagrante convertida em preventiva; se responderá ao processo em liberdade; ou se não responderá a processo penal, caso considere o flagrante ilegal. O juiz pode determinar também a realização de perícia e exame de corpo de delito para apuração de suspeita de abuso no momento da prisão, além de instaurar investigação criminal ou administrativa contra o policial acusado.
A advogada lembra que a principal crítica, no relatório, era que na maioria dos casos o suspeito sequer era perguntado sobre situações de violência, e que os elementos que já estavam muitas vezes presentes no auto de prisão em flagrante eram completamente desconsiderados em audiência de custódia. “Assim, se perdia uma grande oportunidade que era essa primeira escuta de uma autoridade judicial, da Defensoria Pública e do Ministério Público em de fato apurar o que que aconteceu naquela abordagem policial.”
Em relação ao caso recente do rapaz amarrado, Carolina Diniz avalia que não existe nenhum cenário em que aquela conduta poderia ser justificada e que isso mostra o completo despreparo da Polícia Militar para lidar com pessoas em situação de rua e daquelas que fazem uso de álcool e outras drogas. “O que remonta essas imagens é o cenário do período escravocrata aqui no Brasil. Tirando isso, não existe nenhum contexto em que a gente poderia imaginar que isso acontecesse aqui no Brasil, mas o fato é que tem acontecido, e esse caso não é um caso isolado.”
Carolina Diniz teve acesso à gravação da audiência de custódia, realizada no último dia 5, e destacou que, embora todos esses elementos envolvidos na prisão – amarração com corda e registro em vídeo – tenham sido levados à audiência porque constavam já no boletim de ocorrência, nem a Defensoria Pública nem o Ministério Público nem a magistrada fizeram qualquer tipo de pergunta ao rapaz sobre o fato de ele ter sido amarrado.
“A juíza, pelo contrário, na ata da custódia, na sua decisão, ela disse que o flagrante está em perfeita ordem, e que não existe nenhum elemento que possa indicar a prática de tortura ou outras violências policiais naquele flagrante. E aí converte a prisão preventiva daquele indivíduo que, ao final das contas, tinha sido pego com dois pacotes de chocolate”, disse.
Vídeo da abordagem circula nas redes sociais mostrando o homem com as mãos amarradas aos pés, de forma que não permitia que ele andasse, sendo carregado por dois policiais militares. Os agentes carregam o rapaz segurando pela corda e pela camiseta. Ainda amarrado, ele é colocado no porta-malas de uma viatura. A situação ocorreu dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).
Na semana passada, a Polícia Militar de São Paulo (PM) informou que afastou das atividades operacionais seis policiais que carregaram o homem amarrado. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), o homem foi preso em flagrante por furto em um supermercado da Vila Mariana. Um inquérito foi instaurado para apurar as circunstâncias relativas às ações dos agentes envolvidos no episódio, segundo a SSP.