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Maid: A dor que tem que ser branca para comover o Brasil

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Surpreende que o país se comova tanto com MAID, mas parece não enxergar as diversas Alex que vivem por aqui…

Você com certeza já deve ter ouvido falar, recebido a recomendação ou até assistido a série Maid, produzida pela Netflix. Ela esteve no Top 10 de conteúdos mais populares durante meses, foi assunto em Posts, podcasts, textos e falas extremamente acalarodas de recomendação que se multiplicaram a cada dia.

A série conta a história de Alex, uma jovem mulher branca de vinte e poucos anos de idade, mãe de uma criança pequena, que tenta escapar de um relacionamento abusivo. Para isso, ela decide trabalhar como faxineira, e então o roteiro detalha toda uma série de violações que marca essa trajetória: pagamentos baixíssimos e insuficientes para sua subsistência e de sua filha, violência por parte do pai da criança, falta de clareza da sua própria condição de vitimizada na violência doméstica, fome, doença, perdas e dor – lidando com um nível de sofrimento e violência que ninguém deveria vivenciar. A série realmente emociona, faz chorar, desperta raiva do agressor e até da própria protagonista em quem assiste. Bom mais a fundo sobre o assunto por aqui.

O Brasil é o país com a maior população de trabalhadoras domésticas do mundo, são cerca de 6,7 milhões de mulheres ocupando essa função – um dado importante pra lembrar aqui é que desse total, aqui em nosso país mais da metade destas mulheres é negra. Somente em 2013, após intensa resistência de classe, foi aprovada a proposta de emenda constitucional nº 72, a “PEC das Domésticas”, que igualava o direito das trabalhadoras domésticas aos direitos das demais categorias de trabalhadoras e trabalhadores. As resistências foram abomináveis e incluíram questionamentos sobre a necessidade de pagar um salário (mínimo) e de limitar a quantidade de horas de trabalho. E essas foram as coisas mais leves ditas sobre o tema.

Apesar da alteração legal, pouco mudou, de fato, na realidade das trabalhadoras domésticas. A maioria segue na informalidade, recebendo muito menos do que o necessário para sua sobrevivência, muitas vezes levando consigo suas filhas e filhos que, ou se convertem em brinquedos para as “crianças da casa”, ou em “ajudantes da mãe”. Cabe lembrar que o trabalho infantil doméstico, considerado pela OIT uma das piores formas de trabalho infantil desde 2001, ainda não foi eliminado, e a maioria das crianças empregadas é menina e negra.

Não me recordo de ter visto anteriormente uma comoção parecida com a que foi provocada pela série MAID, e fico me perguntando o real motivo de tamanha repercução da série por aqui. Seria pelo fato do tema violência doméstica, relacionamento tóxico, abusivo ou o feminicídio estar muito em foco pelo aumento de mortes durante a pandemia? Ou seria pelo fato da protagonista viver situações que muitas mulheres, independente de classe social, nível intelectual ou raça passa por situações exatamente iguais, e como ela não se davam conta do quanto isto pode ser perigoso e preocupante, pode também ter sido pelo fato de descobrirem quem lá nos EUA, as empregadas domésticas também não vivem o mar de rosas que muitas vezes é pintado aqui no Brasil ou será que a série fez tanto sucesso porque a protagonista é branca. Num país em que, como consequência direta da escravidão, tem-se uma maioria de trabalhadoras domésticas negras – faxineiras, diaristas, babás – vivendo em condição de subemprego, exploração, pobreza e fome, a dor precisa ser branca para comover alguém. Na verdade o que me comoveu na série, foi o amor da protagonista pela suma mãe aparentemente indiferente a tudo o que a filha vivia, e o amor das duas pela pequena MAID.

O maior dilema ali era a estrema pobreza que elas viviam, e chega a ser irônico, dizer que uma pessoa com um lar pra morar e com um carro pra andar vivia em extrema pobreza quando no brasil estas trabalhadoras vivem muitas vezes em situações sub-humanas, tendo que sobreviver com muitas vezes menos de um salário mínimo criando não uma mas duas 3 ou mais crianças. Sugiro aos cineastas brasileiros produzirem também uma série com uma de nossa Alex do Brasil, dentro da nossa realidade, pra ver se assim conseguirão comover nossa população da mesma forma, ou se ainda vamos valorizar muito mais o que vem de fora. Afinal, quando a dor é das pessoas, pobres, na maioria das vezes negras, ela sequer é percebida como dor, é mais um “sempre foi assim”, que estabelece a subalternização dessas vidas e um lugar de naturalização – mas que, quando é vivida nem que seja na ficção, passa a ser nomeada de sofrimento.

A convivência com os da casa, mesmo comendo a sobra do almoço, depois dos patrões,– não na condição de trabalhadoras do lar , mas de alguém que lá trabalha e serve, mas é “como se fosse da família” – são os ingredientes que produzem a intensa tolerância da sociedade brasileira à injustiça e iniquidade. Fatores esses que marcam a vida de gerações de mulheres trabalhadoras domésticas, dizendo que esse é seu lugar.

Se a autora do livro que deu origem à série, Stephanie Land, passou dois anos limpando casas e fez o Brasil chorar, mulheres passam gerações no mesmo trabalho. Importante lembrar que uma delas foi uma das primeiras vítimas letais da covid, após contrair a doença de sua patroa e patrão que voltaram da Europa. Outra perdeu o filho, que havia levado consigo para o trabalho, mas foi abandonado sozinho num elevador, enquanto ela levava para passear o cachorro da família empregadora. Muitas foram estupradas, sofreram agressões físicas, foram encontradas em condição análogas à escravidão, mas eu não vejo o Brasil se comover.

Então, eu diria que, para mim, não é surpreendente que o Brasil esteja comovido com a história de sofrimento de uma jovem trabalhadora doméstica americana, e acredito que devemos estar, porque nenhuma violência deve ser tolerada. O que é surpreendente é o país ser tão indiferente a tudo que vivem as domésticas de nossa pátria.

 

Por: Keliana Fernandes

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